Vida e propriedade privada

A relação entre vida e propriedade privada nos confronta com frequência. Podemos até não perceber, mas é muito recorrente. Narrarei dois casos simples, verídicos, testemunhados por mim, ocorridos em dois bairros periféricos da capital, e que são didáticos para o entendimento daquela relação.

Caso 1 (set/18): uma pessoa está em seu apartamento e ouve um grito de mulher pedindo socorro. Liga para a polícia e informa que talvez seja uma tentativa de feminicídio. A viatura leva 1h para chegar. A pessoa vai até a rua e diz aos PMs o que ouviu. Nenhum dos agentes desembarca. O motorista diz que “isso é coisa de marido e mulher”. A pessoa informa que “coisa de marido e mulher pode terminar em homicídio”. O agente responde que precisaria de uma autorização por escrito do síndico para entrar ali. A pessoa responde que isso não existe e que qualquer pessoa pode entrar em residência alheia se tiver como justificativa salvar uma vida. O policial na poltrona do passageiro começa a demonstrar insatisfação. Entendendo que nada iria ocorrer e começando a temer por sua integridade, a pessoa agradece a atenção dos PMs pelos 2min perdidos e eles vão embora. Obs.: no dia seguinte, descobriu-se que a mulher pediu socorro porque seu marido e seu irmão estavam brigando.

Caso 2 (fev/19): a campainha da casa toca. A pessoa vai abrir e vê três PMs e um civil. Este diz que seu celular de R$ 6 mil foi furtado e que, por meio de um rastreador, o sinal do celular estava vindo de dentro daquela casa. Acuada, a pessoa autoriza a entrada de todos. Durante 15min, os agentes vasculham cada palmo do jardim e do quintal da casa. Sem nada achar, se retiram. Foram na casa vizinha, num estabelecimento comercial e, por fim, pularam um muro e entraram em um terreno baldio, onde, em meio a insetos e a pequenos animais, finalmente, após cerca de 40min, encontraram o aparelho.

Em uma sociedade movida pela lógica do consumo, a propriedade privada tem mais importância do que a vida de uma pessoa. Esses casos ajudam a entender como isso funciona, sem sequer precisar recorrer a casos estruturais.