Sobre o 'Abuso de Autoridade' e o combate à corrupção

O Senado Federal aprovou o projeto de lei n°027/2017, que supostamente trata de medidas contra a corrupção e fixa a punição de juízes, procuradores e promotores que praticarem "abuso de autoridade". Referido PL é, originalmente, o chamado "Pacote das 10 medidas contra a corrupção", de iniciativa popular, e que foi desnaturado na Câmara dos Deputados.

Devemos alertar que o mesmo pouco vai acrescer no efetivo combate à corrupção. É pura cortina de fumaça. O que ele tem de mais sólido é a tentativa de inibir investigações/ processos nessa área e amordaçar o Ministério Público Brasileiro. Explico: os artigos 8° e 9° tipificam crimes de abuso de autoridade praticados por membros da Magistratura e do Ministério Público, sendo algumas condutas ali tipificadas justíssimas, como proferir julgamento ou emitir parecer quando impedido por lei; e agir com motivação político-partidária. Tais comportamentos são descrições claras de inobservância aos deveres funcionais e éticos mais básicos dessas carreiras e, por isso mesmo, mereceriam punição até maior do que as que o projeto trouxe, já que representam atos de corrupção. Não são essas previsões, contudo, que me preocupam.

O que me causa grande preocupação é a clara tentativa de inibir a atuação dos membros do Ministério Público que ousem agir contra os corruptos de plantão. De acordo com o malsinado projeto, também é crime de abuso de autoridade: "expressar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de atuação do MP ou juízo depreciativo sobre manifestações funcionais, em juízo ou fora dele, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério" (artigo 9°, inciso XII). O que esse dispositivo fará é implementar a censura aos membros do MP, que não poderão cumprir com a sua obrigação de dar publicidade aos casos de corrupção investigados ou denunciados ao Poder Judiciário, que também é um direito fundamental de todos os cidadãos (o artigo n°13, item 1, alíneas "a" e "b" da Convenção da ONU de combate à corrupção, da qual o Brasil é signatário, coloca como diretriz "garantir o acesso eficaz do público à informação").

Quem atua na área sabe que, após a instauração de investigações, o cumprimento de prisões e o posterior processamento dos agentes políticos e públicos por corrupção, uma das primeiras estratégias de defesa é a concessão de notas à imprensa ou mesmo de entrevistas coletivas desqualificando a atuação do MP, dizendo se tratar de "perseguição política", "causa pessoal" ou de que "não existem provas". Aconteceu comigo, em Trairi e Quixeramobim, e com diversos colegas que, exemplarmente, não sucumbem à tentação palaciana de se aliar aos donos do poder local ou estadual. Mas o que esse dispositivo tem a ver com isso? Tudo, pois, pela sua redação, não poderão os membros do MP rebater as mentiras assacadas pelos "perseguidos da hora", apresentando os elementos de prova que levaram a agir de determinada forma. Fala-se tanto em um processo com paridade de armas, mas o que se vê é uma tentativa clara de só dar voz aos acusados, que estariam livres para falar o que quiserem, sem a população poder ouvir o outro lado de maneira imediata.

É claro o intuito de sonegar ao público o direito à informação, conduta manifestamente inconstitucional e inconvencional. Pela Convenção de Viena sobre os Tratados (artigos 26, 27 e 46) e pela própria Convenção de Mérida (artigo 65), o Brasil é obrigado a garantir o direito à informação dos casos de corrupção, sendo a proposta antijurídica.

À luz desses dispositivos, existe algo chamado "tutela mínima anticorrupção" (tema que defendi em minha dissertação de mestrado junto à Universidade de Lisboa), o que significa dizer que não possuem validade jurídica normas que tragam retrocesso no combate à corrupção. Hoje, é a proibição de falar; amanhã, pode ser a anistia a crimes e assim por diante.

Tais elementos, por si só, já deixam bem claro que não se trata de um projeto seriamente comprometido com o fim oficialmente anunciado. Teríamos outros elementos, mas o espaço é limitado.

Finalizo fazendo um apelo à população, que será a grande prejudicada: manifestem-se nas redes sociais, enviem e-mails, façam-se ouvidos pelos seus "representantes" na Câmara dos Deputados. A garantia de um MP altivo e independente, corajoso para processar os governantes de plantão por malfeitos, depende muito disso. Contamos com vocês!


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