O uso de MP pelo novo governo

Sem adentrar na questão jurídica de saber da pertinência de se veicular determinados assuntos através de uma Medida Provisória, inegável é que a Medida Provisória, porque elaborada unicamente pelo represente do Poder Executivo e não pelos diversos membros do Poder Legislativo, não é o meio mais democrático de regulamentação de condutas. Assim, é que a Constituição Federal autoriza seu uso apenas em casos excepcionais.

Uma das mais festejadas características do novo governo é o fato de ele representar mais autenticamente à vontade do povo, representando assim uma democracia mais efetiva que a do governo anterior.

Não obstante essa realidade, o novo Governo Federal logo no início de sua atuação surpreendeu a sociedade com a edição de Medida Provisória (de n.º 104, DJ de 10.01.2003) que possui texto idêntico à Medida Provisória antes editada pelo presidente Fernando Henrique (de n.º 75) e expressamente rejeitada pelo Congresso.

O texto da Medida Provisória de n.º 104/2003 é elemento que, por si, já demonstra a sua característica antidemocrática. De fato, a MP n.º 104 revoga o art. 374 do novo Código Civil, que por sua vez dá à compensação de tributos o mesmo tratamento que atribui aos créditos de natureza privada, tratando igualmente Estado e cidadãos.

As normas de um Código, no caso o Código Civil, são por essência fruto de amplo debate da sociedade, tendo Rui Barbosa afirmado que ´não é pela celeridade que se recomendam as codificações [...] é pela reflexão que são feitas, e a reflexão, de sua natureza, exclui a celeridade´.

A norma do art. 374 do Código Civil é fruto de ampla discussão dos contribuintes, perante a própria Administração e perante o Poder Judiciário, sobre a possibilidade de se compensar o crédito tributário de uma maneira mais justa. Essa maturada discussão, de décadas, não pode ser bruscamente alterada por um instrumento de natureza excepcional e urgente.

Por outro lado, e é este o dado mais importante no que diz respeito à antidemocracia da MP n.º 104, deve ser ressaltado que o Congresso Nacional rejeitou expressamente a Medida Provisória n.º 75 de texto idêntico a de n.º 104. Em outros, termos a edição da MP n.º 104 significou o desprezo por essa expressa manifestação do Congresso, pela manifestação dos diversos representantes do povo. Insistiu-se no arbítrio.

Não se admite, portanto, que um governo que pretende ser democrático, com um único ato, qual seja a edição da MP n.º 104, despreze toda a realidade que motivou a elaboração do art. 374 do Código Civil, e ainda a rejeição da tentativa anterior de alteração desse artigo do novo Código Civil.

A questão é importante não só no que diz respeito a essa Medida Provisória de n.º 104, mas porque o novo governo, como dito, representa mudança. E uma das mudanças mais desejadas pela sociedade no que diz respeito ao governo anterior era exatamente a possibilidade de se alcançar uma certa segurança jurídica em relação às normas que regulamentam a conduta do cidadão. E é preciso que a sociedade se insurja de pronto, para que a edição de MP`s não seja novamente uma habitualidade do governo, habitualidade esta difícil de combater, apesar dos graves males que traz para a democracia.

Advogada e membro do Instituto Cearense de Estudos Tributário