“O destino dos países é a formação de blocos econômicos”

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Sem querer prever o futuro, Thomas Richter, alemão, doutor em Direito Comparado e professor visitante da USP, defende: a saída para os países é a união em blocos. Primeiro, para a criação de mercados, depois, atingindo as liberdades pessoais até chegar ao multiculturalismo

O que é Direito Comparado e qual a sua importância no mundo globalizado?

O Direito Comparado é o estudo do Direito Estrangeiro. Sua grande importância política é de abrir a porta para a aceitação de outras idéias jurídicas. Neste mundo globalizado, a ordem territorial do Direito perde cada vez mais a sua importância. No caso dos contratos, considerados os primeiros elementos do Direito Internacional, não há como localizá-los. Um contrato Brasil-Alemanha, ele não existe, não tem domicílio. De qualquer forma a gente tem que decidir quais as normas que dominam esse contrato. Isso seria uma maneira técnica de decidir entre o Direito alemão e o brasileiro.

Como isso acontece?

Não se pode decidir de maneira técnica porque dificilmente levaria à solução do problema de forma convincente. E para a segurança jurídica dos dois, neste mundo globalizado, precisamos de soluções de conflitos convincentes, para evitar que o conflito continue. Não basta solucionar o problema no aspecto jurídico, mas encontrar uma saída que convença e traga paz jurídica. É importante a aceitação de ambas as partes.

Essa aceitação mútua é algo que não tem relação com o território?

Não tem nada a ver com o território. Para assegurar uma paz jurídica entre Alemanha e Brasil, que tem muito comércio, é preciso que haja respeito à legislação do parceiro. É por isso que surge a necessidade de estudar o ordenamento jurídico do parceiro, a fim de entender como ele faz para aceitar sua forma de resolver os conflitos. Este é o problema do mundo globalizado, a solução dos conflitos, sendo esta a tarefa principal dos juristas. É preciso resolver o problema de uma maneira pacífica, para criar uma paz jurídica.

Qual a importância da união dos países em blocos?

Realmente o lado econômico é sempre o primeiro aspecto a ser levado em consideração no momento da criação de blocos. Foi assim na União Européia, e em 1991, no Mercosul. Sempre foi assim e sempre vai ser , porque é mais fácil lidar com a economia. Na União Européia, estamos numa fase de estender essas liberdades econômicas às liberdades pessoais. Percebo o prazer de gozar dessas liberdades pessoais que me permitem, por exemplo, trabalhar em qualquer país da União Européia.

Mas essa liberdade de ir e vir se restringe apenas aos cidadãos da União Européia?

Qualquer cidadão da União Européia, e existe um termo técnico para designar essa condição, cidadania européia.

O que o senhor acha dessas leis que tentam dividir o mundo em dois blocos, países do Norte e do Sul?

Entendi a pergunta que tem assim, eventualmente, um tom até separatista. De um lado temos a União Européia, e do outro, o Mercosul, que se constróem como blocos, parece que vamos chegar a um mundo de blocos. Blocos mais separados que anteriormente os países membros desses blocos com os outros países membros dos outros blocos, é essa a minha preocupação. Não posso prever o futuro mas, acho que o mundo vai se organizar nesses blocos, sim.

Por quê?

Percebo que há mais facilidade de negociação desses blocos entre eles. Vejo também uma grande vontade política e um esforço político desses blocos negociarem entre eles. Até as negociações econômicas são muito difíceis. Mas eu acho ainda mais fácil, no caso, da União Européia negociar com o Mercosul. Imagine os 27 membros da União Européia negociando separadamente com os quatro do Mercosul. Quantos acordos bilaterais seriam necessários.

Quanto às liberdades pessoais?

Não posso ver ainda um grande foco da política dos blocos nessa questão. Parece que esse tema da livre circulação de pessoas de um bloco para outro ainda vai demorar muito tempo, como demorou 50 anos na União Européia. Mas na prática, podemos constatar que os cidadãos do bloco do Mercosul têm livre acesso à União Européia. Pelo que sei, fora da Espanha, que houve aquele problema, específico com brasileiros, há alguns meses, acho que durante muitos anos não houve problema de ingresso de europeus para o Mercosul e vice-versa. Pelo menos a título turístico, tudo bem, para morar é outro assunto.

Quando me refiro à livre circulação, estou falando de pessoas que ao tentar buscarem trabalho na Europa, se deparam com leis migratórias que ferem o direito fundamental de ir e vir, principalmente, contra mulheres...

Desconheço este tipo de problema na Alemanha. Ouvi falar deste problema em Portugal, agora, é mais uma impressão pessoal. Quando viajei para Portugal, realmente, os portugueses me falaram desse fenômeno lá e ficaram preocupados.

E na Alemanha?

Na Alemanha, não. Falei com a consulesa sobre o problema, mas ela falou que, via de regra, nunca houve registro com brasileiros. Claro que pode haver um problema individual, como por exemplo, de chegar uma pessoa estrangeira, venha de onde ela vier, sem dinheiro e sem cartão de crédito. Fazer o que com ela no aeroporto se está sem nada? O que ela vai fazer? Realmente, todo país tem legislação sobre isso e o Brasil também tem, e aplicou aos espanhóis, há alguns meses, de maneira rígida.

Então, não existe uma política restritiva?

Política restritiva, não. Agora, quanto à residência, é outro assunto e temos que diferenciar também a entrada de pessoas a título de turismo, de 90 dias, o que é muito fácil tanto aqui quanto lá. Agora, para tomar residência é complicado em qualquer país dos dois blocos.

E dentro dos mesmos blocos como é a situação de garantias trabalhistas e de seguridade social das pessoas que saem dos para trabalhar em outros países?

O grande problema que falta ser resolvido ainda é o da seguridade social. O lado de cá não conheço ainda, mas os estados membros da União Européia têm uma política de conciliar os sistemas de seguridade social. Só que, na prática, não funciona ainda porque os sistemas de seguridade social, pelo que vejo, são muito nacionalistas, típicos de cada país e muito relacionados com a cultura de cada um. Por enquanto é um objetivo político. Quanto aos direitos fundamentais, existe tanto dentro do Mercosul quanto na União Européia certos direitos fundamentais vigentes.

O senhor poderia citar alguns?

No Mercosul temos a convenção da OEA (Organização dos Estados Americanos) sobre os direitos humanos e a entidade criou também o Tribunal de Direitos Humanos de São José para proteger de maneira eficaz esses direitos fundamentais. O mesmo acontece na União Européia onde todos os seus estados que integram este bloco são membros da Convenção Européia de Direitos Humanos que conta com o Tribunal de Direitos Humanos que tem sede em Bruxelas.

E com relação ao Mercosul?

Estamos vivendo também um processo de democratização, prova disso é a criação do primeiro grupo parlamentar do Mercosul, previsto no Protocolo de Ouro Preto, como órgão do Mercosul. Agora, há pouco tempo, o Mercosul introduziu o seu parlamento, mas que ainda não tem muito poder, nem orçamento ele pode votar, mas um dia vai chegar lá. É a história da União Européia, que começou depois da Segunda Guerra Mundial [1939-1945] que se repete um pouco aqui.

Cada vez mais o Estado moderno vem diminuindo sua capacidade de proteger os cidadãos, como o senhor analisa a situação atual dos países europeus que também enfrentam problemas, como desemprego, restrição aos serviços essenciais?

Os grandes problemas econômicos são bem semelhantes tanto no Brasil como na Europa. Quanto à retração do Estado em função da globalização, é um fenômeno que acompanhei até há alguns meses. Olhando o último mês, estamos vivendo o fenômeno da retomada de atividades econômicas dos países e dos estados modernos dentro dessa crise financeira que a gente chamou de americana e, agora, chegou à Europa. Ainda não chegou tanto aqui no Mercosul, ainda bem, mas chegou com toda força na Europa. Olhando as recentes medidas tomadas pelos governos americanos e europeus, já nos leva a uma percepção um pouco diferente do poder do Estado.

Como essa mudança está sendo materializada?

Os governos americanos e europeus pegaram bilhões de dólares e euros, o governo alemão pegou na mão uma quantia para superar a crise bancária. Hoje, o estado está ajudando os bancos, diferente do que ocorria até há um mês. O estado ajuda os bancos, ele não vai dar presente a essas instituições. Ele entra nos bancos e toma um poder, não necessariamente, o poder, mas ele participa do poder dos bancos. Até nos Estados Unidos, considerados como modelo de privatização, os bancos americanos pediram ajuda ao estado. É uma revolução econômica o estado nacionalizar instituição privada. Estamos vivendo um ´revival´ do poder estatal na economia.

E como a Europa está sentindo a crise?

Estou longe, moro no Brasil, mas lá existe muita incerteza e medo do futuro. Esta foi a primeira crise, após a Segunda Guerra Mundial, que na Alemanha e na Europa, as pessoas começaram a questionar o valor do dinheiro, das poupanças. Comprar títulos, ações, é um perigo, todo mundo sabia. Mas o valor da própria cédula bancária, do próprio banco central, nunca havia sido questionada.

À luz do direito comparado, como o senhor analisa o muticulturalismo?

Acho que essa formação de blocos é o motor do multiculturalismo mesmo. E as liberdades proferidas pela legislação européia aos cidadãos europeus já começam a atingir a vida privada. O tribunal europeu além do limite das liberdades fornecidas, aplicando a lei do lugar de residência sobre o nome dos filhos a cidadãos de outro estado membro. O nome é um direito, uma parte central da via da pessoa tem relação com nacionalidade. Vai muito além das garantias européias da livre circulação de pessoas e mostra o multiculturalismo. A última barreira com relação à livre circulação de pessoas é quanto o estado cobrar que a pessoas tenha condições de sobrevivência no país de destino.

Existe semelhança entre as legislações da União Européia e do Mercosul?

A forma de legislar é muito diferente. O Mercosul tem uma estrutura intergovernamental, ou seja, as leis do Mercosul se fazem por consenso dos governos. Na União Européia já não é mais assim, a legislação se faz por maioria. O grande diferencial é a transferência de soberania dos estados membros para a União Européia que goza assim de supranacionalidade.

O destino dos países é mesmo a formação de blocos?

O destino final é esse, mas ainda não houve. O primeiro caso é a União Européia onde existe a supranacionalidade, que está relacionada à confiança mútua. Ceder soberania é uma demonstração de muita confiança entre os países membros. Quem cede soberania não pode voltar atrás, dificilmente, ele pode pegar de volta.