O bom José

Cheguei a Lourdes, a cidade santa, no fim da tarde. Dia estirado de verão. Chegamos nas asas benditas do trem. Lembra minha Crateús. Lembra meu pai, que tangia o trem cheio de saudades. Estava ali não como turista. Estava como peregrino. Pisava o mesmo solo que tantos pisaram. Achegavam a Jesus, com fé. Apeados nas dores que carregavam com tantas lágrimas. Piso no mesmo solo que pisou Alexis Carrel.

O filho de Lion chegou como eu. Como homus religiosus que mora em nós. Mesmo nos agnósticos, como o Nobel de Medicina, esta sede de Deus moureja em nós. De repente, aquele lugar sagrado se transformou. Uma multidão silenciosa. Piedosa, crente nas coisas lá dos céus. Carregando velas, como tochas de fé. Iluminando a escuridão dos nossos caminhos. Carrel presenciou o paciente que ficou sarado duma TB terminal. Mas eu vi os milagres na face e nos olhos de tantos. Uma noite em que parecia que Maria trouxera Deus por nosso meio. Nada tinha a pedir. Como Semeão, eu diria: "Nunc dimitis" agora nada mais peço. Deus me deu tudo. Minha filha Alice foi curada. Sei que não mereço, mas agradeço, meu Senhor. Já ia para o Hotel, quando soube da morte do meu amigo José Carneiro Rangel. Fui muito ligado a ele. Foi meu vizinho. Algumas vezes atendi a Zeneida, que ele me levava. Fui médico de sua mãe, uma mulher admirável. Fui médico do Jansen, seu irmão.

Diz Pedro Casadáliga que a ternura é um quase sacramento. Rangel tinha o coração esvaziado de ternura. Sabia os limites da amizade. Contou-me de sua vida em Paris. Quando declinou de morar na Casa Franco-Brasileira, para estudar mais e se dedicar ao curso que fazia. A vida o levou para ser colunista social, o que fazia com grande elegância e decência. Os amigos são tesouros acabados, que vão sendo esmerados com o tempo. O Zé sempre enriquecia as conversas com sua sabedoria leve e fidalga. Que não esmagava, nem muito menos humilhava. Ao partir naquele esteio de alegria, surge um abismo de dor e de saudade. Sua amizade é aquela que soma. Via no Zé um mundo vasto de enternecimento. De chegar junto. De partilha.

Era o amigo que tinha sempre uma palavra. Seja para sentir a profundidade da dor. Seja para aquilatar a vastidão de alegria. São os amigos que estão conosco, mesmo quando os dias estilhaçam ou empalidecem. Neste momento de saudade, não pergunto porque o Rangel se escarçou da minha vida. Pergunto apenas porque ele aqui chegou? Saudades.

José Maria Bonfim de Morais
Médico cardiologista