Notre-Dame e nossa relação com o sagrado

Descuido em relação ao sagrado: estou falando dos construtores franceses e de sua catedral, apenas, ou de cada homem em relação à sua própria essência? Quando os desastres se externalizam, há quanto tempo eles já eram gestados dentro de nós?

Notre-Dame é Nossa Senhora e nossa Dama, a alma pura que gesta e acalenta o Divino em nós. O Fogo é dual: quando celeste, dá vida, transmuta. Quando terrestre, destrói, calcina, dissolve; o fogo das paixões, fanatismos e ambições pertence a esta segunda categoria. E este fogo de Notre-Dame, em particular, foi destruidor, pontual e preciso. Rompeu logo o Omphalos, o umbigo, o agulhão central e elevado que nos recordava de que, um dia, fomos parte do corpo da Mãe. Este tipo de fogo ameaça colocar abaixo tudo o que construímos de vertical e belo ao longo da história.

Mas não há que dramatizar, e sim que aprender. Quando a dor da perda se converte em despertador da consciência, lembramos que as cinzas também fertilizam a terra, e Nossa Senhora sempre está pronta a aceitar uma nova casa ou mesmo a reforma da antiga, contanto que erguidas sobre bases mais firmes e nobres, que sustentem seu impulso incansável rumo aos céus... Eu creio e aspiro que assim seja!

Para quem conhece algo da chamada "geometria sagrada", sabe que a construção destas catedrais "góticas" era obra quase que exclusiva da chamada "arquitetura real", ramo construtor da arte alquímica. A Alquimia medieval usava como fachada a transformação do chumbo em ouro, quando de fato pretendia transformar o chumbo da ignorância em ouro da sabedoria, baseada em antigos textos herméticos egípcios. Decoravam suas catedrais com símbolos da transmutação humana em três etapas: obra em negro, em branco e em vermelho. Para o leigo, estes símbolos nada mais eram do que estampas arbitrárias de decoração; o homem superficial de todos os tempos não fala mais a língua da vida, que é toda ela simbólica.

O plano do templo era como um corpo humano deitado, cuja cabeça se encontrava na região do altar. O cálculo do "quadrilátero do templo", cujo centro era o coração, era a base de tudo. Abaixo deste coração, o umbigo ou Omphalos, que marcava o ponto em que a Mãe e seus filhos estiveram unidos e poderiam se reencontrar. Um templo era um libelo contra o esquecimento destas verdades primordiais da vida.

As Grandes Obras, que guardam preciosas recordações, lutam sempre arduamente contra a impermanência, pois os homens necessitam delas. Peças clássicas do teatro grego, como Édipo, Medeia e outras, ainda lotam grandes teatros em nossos dias. A ferida aberta pela visão de algo tão sagrado como Notre Dame sendo devorado pelas chamas, como um icônico coração do mundo, fere corações de todas as partes da terra. E este "espetáculo", embora doloroso, faz-nos lembrar que, hoje ainda, assim como sempre, na história... Nós nos separamos pelo banal e nos unimos pelo Sagrado.

"A beleza do mundo criado é de uma harmonia tão extraordinária e tão bem elaborada que qualquer ser dotado de razão, sabendo ver e refletir, pode ser espiritualmente elevado." (Hierarquia Celeste, p.273, Dionísio Aeropagita.)


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