Imunidade dos livros

A Constituição, objetivando instaurar um Estado Democrático, deu imunidade tributária a livros, jornais e periódicos. Tal imunidade tem como fim assegurar a liberdade de expressão e baratear o acesso à informação, impedindo que se utilize o tributo como forma de censura indireta.

Quando da feitura da Constituição, porém, as contribuições eram insignificantes na carga tributária global e o Governo Federal não as utilizava, como ocorre hoje, para suprir o Tesouro Nacional. Assim, ao tratar da imunidade tributária, o constituinte utilizou apenas a expressão ´imposto´, em vez de tributo - termo que engloba impostos e contribuições. É evidente, porém, que se o fim da imunidade é assegurar a liberdade de expressão e baratear a informação, e considerando que o Governo passou a utilizar as contribuições no lugar dos impostos, deve-se reconhecer que a imunidade também abrange as contribuições. Não sendo assim, ter-se-ia que admitir que bastaria o Governo mudar o nome do tributo, para aniquilar o importante valor que a Constituição quis proteger.

Pois bem, mesmo assim, o Governo Federal continuava a exigir das editoras as elevadas contribuições PIS e Cofins. No final do ano passado, porém, foi editada a lei nº 11.033 isentando expressamente os livros da Cofins e do PIS.

Com esperteza, membros do Governo afirmaram que, apesar da ´perda na arrecadação´, a lei era boa, porque iria diminuir o preço dos livros. E muitas outras pessoas festejaram, por entender que o Governo admitiu o equívoco na arrecadação dessas contribuições.

Realmente, essa lei representa certo alívio para as editoras de livros, porque a Receita Federal deixará de realizar a inválida cobrança que vinha fazendo. Ocorre que, por outro lado, tal lei não faz referência a jornais e periódicos, e pode ser usada como um argumento a mais pelo Governo, para, mesmo em relação aos livros, tentar exigir as contribuições referentes ao período anterior à ´inovação legislativa´. Além disso, referida norma demonstra ainda a falta de perspicácia de muitos intérpretes do Direito, que precisam de palavras expressas para apreender o que já estava implícito. Para muitos, se um direito não estiver bastante claro na lei, é como se não existisse, por mais que possa ser logicamente subentendido.

Na verdade, quanto aos livros, a lei nº 11.033 ou diz o óbvio, por apenas repetir o que está na Constituição, ou é inválida, caso se entenda que o direito das editoras ao não pagamento do PIS e da Cofins limita-se apenas ao período posterior à sua edição.

Nessa última hipótese, o Governo, longe de haver sido generoso, foi malicioso. Depois de muito tentar usurpar, por completo, direito do contribuinte, recua um pouco, na esperança de que ele abra mão do restante. E mais, ao mencionar ´perda de arrecadação em face da isenção´, o Governo Federal novamente admite estar desviando valores que deveriam ser destinados ao orçamento da Seguridade Social. Sim, porque nos termos da Constituição, como se sabe, a Cofins destina-se ao custeio da Seguridade e não ao orçamento fiscal da União. O incrível é que o Governo faz tudo isso, para depois afirmar que a Previdência está quebrada, por falta de recursos. É realmente admirável sua habilidade para errar, fazer parecer que o culpado foi outrem, e ainda que só ele, porque muito competente e preocupado com o interesse público, pode consertar a situação, fazendo doações para a Previdência com o dinheiro que dela retirou indevidamente.

Seja como for, essa lei deve servir de reflexão para a necessidade de se desenvolver um raciocínio jurídico mais lógico, menos escravo da literalidade e mais atento à finalidade das normas. A interpretação jurídica só difere das demais porque seu objeto é especificamente as normas jurídicas, e não porque se submete a uma lógica completamente distinta da empregada na vida cotidiana. Sabe a idéia de que para bom entendedor meia palavra basta? Pois essa idéia também se aplica ao Direito.

É de se esperar que o Poder Judiciário, como bom entendedor do Direito, preserve os valores que a Constituição consagrou e reconheça que, em relação aos livros, a lei nº 11.033 nada mais fez do que explicitar o que estava na Constituição: estes não se submetem à incidência da Cofins e do Pis. E a desnecessidade de recolher esses tributos, no caso, evidentemente, tanto não se inicia apenas com a edição da nova lei, como se aplica também aos jornais e periódicos.

Raquel Cavalcanti Ramos Machado é advogada, mestranda em Direito e membro do ICET e da Comissão de Estudos Tributários da OAB-CE