'Estatuto da impunidade'

A nova Lei de Abuso de Autoridade nº 13.869, de 2019, antes sancionada, foi agora promulgada pelo presidente da República com os vetos rejeitados pelo Congresso Nacional, está vacante e entrará em vigor, com os seus novos tipos penais, somente em janeiro de 2020. Até lá, em vigor a lei nº 4.898 de 1965. Na esteira de grandes nações democráticas, o Brasil adotou a regra do "direito penal mínimo", de que o Direito Penal só deve intervir quando o conflito não seja resolvido por outros ramos do direito (civil e administrativo), com indenização, demissão ou cassação de aposentadoria do servidor.

Todavia, essa Lei, votada com a "máxima urgência", no interesse da elite política brasileira, como há anos já dizia Clóvis Beviláqua, está na contramão da mínima intervenção penal, além  de criminalizar condutas subjetivas. "Tomarei como exemplo um único dispositivo dessa lei de abuso de autoridade, melhor chamada como "Estatuto da Impunidade", o artigo nono.

Será condenado à pena de um a quatro anos de prisão o juiz que: mandar prender alguém "em manifesta desconformidade às hipóteses legais"; não colocar em liberdade alguém quando a prisão for "manifestamente ilegal"; não substituir por medida cautelar ou liberdade provisória quando "manifestamente cabível"; não deferir ordem de habeas corpus quando "manifestamente cabível".

Ora, a lei brasileira prevê pelo menos doze tipos de recursos criminais diferentes, com três instâncias recursais depois do juiz de primeiro grau: o tribunal, o STJ e o STF.(Eduardo Perez Oliveira, é, por enquanto, juiz de Direito e primário, com bons antecedentes, in Blog do Fred, da Folha de SP, em 25.09.2019)".

Crime é prender. Soltar, não. A criminalidade organizada agradece e está à vontade, porque os juízes ficarão precavidos em não adotar providências necessárias para a persecução criminal, com receio de serem acusados de cometer tais crimes. Para quem quer ser sempre vitorioso em  pedidos  judiciais e se sente contrariado, a nova lei o "convida" a procurar o Ministério Público para que este denuncie as autoridades, notadamente a Polícia e juízes. É inequívoco que essa nova lei veio para enfraquecer o trabalho dos que lidam com a grande corrupção, sendo os seus principais alvos a Polícia, Ministério Público e juízes.

Registre-se, todavia, que todos os crimes nela previstos são de ação pública incondicionada (art 3º); exigem uma finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal (§ 1º,art. 1º) e a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade  (§ 2º,art. 1º).

O Ministério Público, como titular da ação penal pública incondicionada, órgão importante na democracia, não irá denunciar tudo que lhe chegue ao conhecimento que não constitua crime. Caso, todavia, seja ofertada a denúncia, cabe ao Poder Judiciário examinar e dar a última palavra.

Se o Ministério Público não oferecer a denúncia no prazo de seis meses, surge a "queixa subsidiária" a cargo do particular, cabendo sempre ao Judiciário dar a última palavra sobre a existência ou não desses crimes.

É importante lembrar que, quem der  causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente, será processado por denunciação caluniosa (art. 339 do Cod. Penal) e a indenizar os danos materiais e morais à autoridade ilegalmente denunciada.

Agapito Machado
Juiz federal e professor da Universidade de Fortaleza


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