Entre a palavra afiada e a decepada

Eleições são feitas com o debate de ideias. Essa máxima, dita de forma recorrente, parece pueril e artificial diante de uma análise do processo de tomada de decisões e da observação da realidade das campanhas eleitorais, em que candidatos sabidamente mentem, apelam a emoções dos eleitores e, muitas vezes, não têm tempo de expor pensamentos.

As últimas eleições presidenciais brasileiras, especialmente, foram marcadas pela falta de debate, diante do evento trágico envolvendo a facada no então candidato a presidente da República e atual presidente. Além de conduzida por esse fato, a eleição foi orquestrada por ideologias extremas, pela criação de estereótipos do cidadão do bem e do cidadão do mal, por fake news, por campanhas em grupos fechados de WhatsApp sem abertura ao diálogo. Realmente, foi uma campanha marcada pela emoção, em que o candidato eleito não revelou seu poder de retórica, de articulação de ideias, de responder aos questionamentos da sociedade e de outros candidatos em debates. Não se pode afirmar, como muitas vezes se faz, que não tínhamos opções.

O leque do perfil de candidatos era amplo, tanto do ponto de vista ideológico, como da carreira profissional e política. Por motivos complexos emocionais e dialógicos, a eleição se afunilou entre os polos de esquerda e direita, e a maioria dos eleitores escolheu o candidato que se sabia consagrador de controvérsias num pacote ainda obscuro de medidas, mas do qual se anunciava esperar eficiência na tomada de decisões que poderiam levar a um novo crescimento econômico do País.

Passados alguns meses da posse do atual governo, apesar de o presidente permanecer com um núcleo duro de apoiadores, sua popularidade cai, sobretudo diante da percepção de três características: a) a falta de traquejo verbal, mesmo para lidar com pessoas que formalmente exigem certo rito no tratamento; b) o uso de agressões desnecessárias a valores humanos básicos e a causas defendidas por grande parcela da sociedade, como o meio ambiente; c) a dificuldade de articulação política para aprovar as medidas necessárias ao governo e que exigem a união, muitas vezes, de ideologias diversas.

Todas essas características, de alguma forma, relacionam-se a habilidades que decorrem da capacidade discursiva verbal e que ficaram encobertas no silêncio da palavra decepada. Em outros termos, mesmo para aqueles que consideram que o debate de ideias entre candidatos pode parecer uma mera encenação, ele revela competências essenciais sem as quais a atuação pública e a governabilidade são muito difíceis.

As escolhas já feitas dificilmente podem ser mudadas, mas servem de ponto de partida para reflexões e tomada de rumos diversos. As eleições municipais se avizinham e talvez seja o caso de utilizar os exemplos já vividos como elementos de educação para a cidadania.

Precisamos de candidatos e de políticos capazes de unir, de transigir e negociar ideias para a realização de atos em prol da sociedade, e não apenas de seu restrito grupo de eleitores. Para tanto, precisamos de candidatos com habilidade para o discurso integrador. Se a palavra afiada pode servir à demagogia, a palavra decepada tolhe o elo entre candidatos, mandatários e os cidadãos.

Raquel Ramos Machado

Professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará


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