Editorial: O cru e o cozido

O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, em uma de suas obras mais importantes, “O Cru e o Cozido”, mergulhou na cosmologia dos povos indígenas do Brasil. Indiretamente, falou para além destas civilizações, contribuindo para a compreensão do gênero humano e de suas sociedades – até mesmo as complexas e contemporâneas. A partir de 187 mitos estudados, o grande estruturalista tratou da passagem da natureza à cultura – brilhantemente representado na metáfora da invenção do fogo, que transforma o alimento, de cru, natural, em cozido, aquilo que é humanamente transformado, recriado.

A oposição é enganosa. Não se trata da substituição de uma dimensão pela outra, como se fosse possível a cultura prescindir do natural. Os alertas ambientais, cada dia mais incisivos quanto ao risco de catástrofes climáticas em escala planetária, servem, também, de lembrete de como não se deve pensar em uma sem a outra. 

É, por isso, oportuna a compreensão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) ao valorizar estas duas instâncias quando imbricadas. A autarquia, ligada ao Ministério da Cidadania, lançou consulta pública a fim de detalhar os critérios para a criação de nova modalidade de reconhecimento de bens culturais. A Chancela como Paisagem Cultural Brasileira, assim chamada, será voltada para lugares especiais justamente por conta da relação saudável e criativa entre grupos sociais nele presentes e a natureza.

Ao seguir este caminho, a política nacional do País ampliaria o mapa do Patrimônio Cultural brasileiro, hoje desenhado pelo conjunto heterogêneo de bens materiais e imateriais reconhecidos e salvaguardados como fundamentais à riqueza simbólica do Brasil. Importante salientar: ainda que existam sempre experimentações locais, avanços regionais que superam seus pares, são os critérios nacionais que costumam servir de referência para políticas culturais nos âmbitos estadual e municipal.

A ideia de paisagem cultural passa pela vivência no território, sua apropriação por uma comunidade, que o reinterpreta e o torna parte indissociável de suas expressões criativas e de sua própria identidade. Não é preciso ir longe para compreender que tal conceito se ajusta a um sem número de manifestações cearenses, inseridas no contexto das tradições populares. Caso do coco, arte tradicional performática que faz parte de um todo mais complexo que é o imaginário das comunidades de pescadores em parte do litoral do Estado; e dos saberes dos mateiros, íntimos conhecedores de vastos territórios naturais que não podem ser trocados como se fossem palcos de uma apresentação.

Para se entender a importância da paisagem para a cultura, do natural para o que é humana e criativamente ressignificado, bastaria fazer como Lévi-Strauss e voltar aos povos nativos do Continente Americano – cuja existência, em todas as suas dimensões, está ligada a seu lugar de origem.

Em tempos que a cultura parece relegada a segundo plano, é importante registrar movimentos que parecem fazer avançar um campo fundamental para qualquer sociedade. Sobretudo quando ele se aproxima da compreensão, cada vez mais necessária e urgente, de que o natural precisa de cuidados e atenção.