Editorial: Fantasmas da seca

Remontam aos tempos coloniais os relatos mais antigos dos efeitos da seca sobre o que hoje corresponde ao território cearense. As narrativas registraram as investidas do fenômeno natural que ameaçava as vidas de povoações indígenas ou de ascendência europeia, por vezes forçando-as ao nomadismo. Deixar a terra para trás era, então, a alternativa limite para não se perecer junto à lavoura e ao gado. Fugia-se da fome e da morte, num cenário apocalíptico que não podia ser evitado, nem revertido, senão por intervenção divina.

No presente, o Sertão ainda é assolado pela estiagem. Não poderia ser diferente, dada sua geografia imutável. Contudo, o homem, sua lavoura e seus animais não são mais tão indefesos contra ela. Há desde paliativos até complexas soluções estruturais, garantidas pelos saberes científicos de diversas áreas. A combinação de gestão pública, investimento de recursos financeiros e conhecimento tecnológico podem hoje transformar desertos em áreas férteis. O sucesso de empreitadas do gênero em Israel é o modelo mais conhecido no mundo. Operado por uma nação rica, é quase intangível, porém concreto. Com os recursos certos, soluções igualmente bem-sucedidas podem ser viabilizadas.

Combater os efeitos da seca, garantindo bem-estar das populações citadinas e rurais e a sobrevivência de arranjos econômicos locais, é imperativo que não pode ser negligenciado. Ignorá-lo ou não honrá-lo é tão mais grave quando há condições técnicas para que tal embate seja travado, com relativo sucesso e com previsível minimização dos danos provocados pelo fenômeno climático.

É grave a notícia de poços profundos sendo perfurados e não instalados, em grande quantidade, ao longo de, pelo menos, quatro anos, no Ceará. Entre 2013 e 2016, o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) teve um índice de não conclusão das obras hídricas da modalidade de 74,7%. No período, 502 poços foram perfurados, mas apenas 118 foram instalados. Em um dos anos da amostragem – 2014 –, nenhum chegou a ser concluído. 

Trinta e dois municípios estão na lista dos prejudicados. Quixadá e Crateús são aqueles que contabilizam o maior número de obras inacabadas, com 57 e 54 poços não instalados, respectivamente. E há indícios de que a falha perdura. De acordo com informações da coordenadoria estadual do Dnocs no Ceará, nenhum dos 328 poços perfurados no ano passado chegou a ser terminado. O resultado é óbvio: a água não chega à superfície, não acode aqueles que dela precisam, justamente nas regiões onde a seca se abate com mais severidade.

As justificativas dadas para explicar a situação incluem falta de recursos e descompasso entre a autarquia federal e parceiros locais. Há de atentar, contudo, para a persistência do problema. Deve-se evocar o bom senso mais elementar: se algo não vai bem, é hora de atentar às dificuldades encontradas e procurar solucioná-las antes de se seguir adiante.

Não se pode admitir que, no presente, a seca permaneça com o status de ameaça contra o qual não há chances de defesa, senão a fuga, o abandono da própria terra. Imbróglios do tipo, que ameaçam atualizar cenários de séculos remotos, requerem atenção e ações corretivas, urgentes e, desta vez, eficientes. 


Assuntos Relacionados