Editorial: Atualizar a tradição

Existe um imaginário em torno do Carnaval, que é feito parte de memória coletiva, parte recordações individuais. Como todas as tradições, a folia tem o poder de fazer crer que ela sempre foi assim, para aqueles que se comunicam com sua manifestação presente, em ruas e salões; e, numa versão desta mesma sensação, de inspirar as críticas daqueles saudosos dos carnavais de outros tempos, para eles, mais autênticos, e dotados de elementos indispensáveis à festa, mas hoje em desuso pelas novas gerações.
Mas sabe-se que as tradições são um fenômeno mais complexo. O historiador britânico Eric Hobsbawn falava sobre invenções das tradições. Para ele, estas eram sempre inventadas. Afinal, em algum momento eram instituídas e novas, ainda que construídas a partir de elementos ou mesmo de tradições anteriores. O que determina sua continuidade é a capacidade de se comunicar com o imaginário e os valores da comunidade. Em pouco tempo, elas entram na memória coletiva e ocupam um espaço cativo, como sempre estivessem estado ali.

Um exemplo disso foi a reconfiguração do Carnaval de rua de Fortaleza, que se expandiu, estabeleceu novos polos, viu nascer blocos tidos como favoritos e emplacou canções no repertório do folião. Um fenômeno que cresceu exponencialmente nas duas últimas décadas e que, hoje, não só faz parecer que a festa na cidade foi sempre assim, como é difícil imaginar de forma distinta – como foram os tempos em que as praias da moda esvaziavam as ruas da Capital. Hoje, há espaço para as duas folias e outras tantas, como as festas serranas, e ninguém parece duvidar.

Dizem os estudiosos das tradições que estas são tudo, menos manifestações culturais petrificadas. Estão em constante manutenção e atualização. Ainda que exista uma conexão forte com o passado, ela faz parte do presente e não pode deixar de refletir o espírito da época em que se faz viva. No caso do Carnaval, são notórias, por exemplo, o jogo da sátira e da crítica social, em que o noticiário político fornece novas personagens que servem de mote para máscaras e fantasias irreverentes; e do cancioneiro de blocos e bandas que fazem troça a partir de novos acontecimentos.

Não é o caso, claro, de deslegitimar a saudade ou desvalorizar o passado. Na festa de Momo, há espaço para toda sorte de folião e de folia. A programação oficial das prefeituras e extraoficiais abundam em propostas que atendem aos mais diversos gostos. E essa multiplicidade é também uma atualização da tradição, que não cessa de se reinventar, mas sem perder a própria identidade.

As mudanças, não se deve esquecer, não são imperativamente boas ou ruins. Mesmo os saudosistas precisam reconhecer o avanço no entendimento de que se deve, cada vez mais, respeitar o espaço e a integridade das pessoas. A festa é espaço de trocas sociais, mas é preciso estar atento à expectativa e aos direitos do próximo. O beijo-roubado, por exemplo, hoje não há dúvidas, se configura como assédio. É Lei e há sanções previstas para esse comportamento.

Aqui, também, deve se lembrar que as tradições também mudam, pois o mundo deixa de tolerar certos atos. Merece ser aposentado, como o lança-perfume que circulava livremente em salões do passado, com a errônea fama de brincadeira inofensiva. 


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