Editorial: Arte e identidade

A arte é um campo vasto, que compreende manifestações que, à primeira vista, parecem impossíveis de serem acomodadas sob a mesma classificação. Expressão do engenho e da subjetividade humanos desafia estudiosos e criadores a defini-la. O poeta Ferreira Gullar encontrou uma saída pela tangente, destacando a necessidade que homens e mulheres têm dela: a arte existe porque a vida não basta.

Os dois campos citados pelo poeta, a arte e a vida, são indissociáveis, e há manifestações em que esta ligação orgânica se mostra mais evidente. É o caso das artes da tradição, cujos fazeres e materiais têm ligação direta com o lugar em que são produzidas, bem como se alimentam do imaginário, dos saberes e valores das comunidades que as põem em movimento. A ligação é tão estreita que, em muitos casos, a arte popular é uma atividade que desempenha papel importante na economia local – o artista vive de sua arte, sem a contradição que muitas vezes se faz presente no universo da arte erudita ou acadêmica.

No Ceará, as artes da tradição popular encontraram terreno fértil. O interior do Estado poderia ter sua geografia redesenhada, a partir dos muitos polos criativos. Encontram-se, de ponta a ponta do território cearense, manifestações com as marcas da identidade do povo que aqui vive, e já reconhecidas longe de nossas divisas. São os casos das rendas, das esculturas em madeira, das xilogravuras talhadas em tacos de imburana, dos objetos e vestes em couro e das figuras e utensílios moldados em barro. 

Recém reinaugurado, o Centro de Cultura Popular Mestre Noza, localizado na área central de Juazeiro do Norte, chama atenção para uma das regiões que a arte tradicional é mais pulsante, e mostra seu potencial de expressão da identidade local e de produto a ser valorizado comercialmente, projetado para além dos limites da cidade, por conta de seu diferencial. Com a marca do Cariri, não se encontram trabalhos semelhantes em parte alguma.

Abrigando uma cooperativa de artesãos, com mais de 100 produtores associados, o Mestre Noza foi criado há 36 anos. As intervenções mais recentes foram feitas pelo Governo do Estado do Ceará e pela Prefeitura de Juazeiro do Norte. Apesar de ser mais lembrado pelas artes em madeira (a matéria-prima usada pelo artista que lhe empresta o nome), dispõe de peças de barro e até mesmo palha de carnaúba, retratando cenas do cotidiano, personagens históricos e figuras do imaginário cearense, em especial, dos originários do Cariri.

Não impressiona a permanência e renovação, dois imperativos da tradição, do Centro de Cultura Popular Mestre Noza. O que chama atenção é que tal modelo tenha tão poucos pares em todo o Ceará. O potencial criativo existe; o de natureza econômica pode – e deve – ser mais bem explorado, demandando políticas públicas de incentivo às artes tracionais onde quer que elas se manifestem.

Tal preocupação não deve se restringir às pastas de Cultura, mas deve chegar aos planos daqueles que administram programas relacionados ao turismo e ao trabalho. Tampouco, as ações devem ficar limitadas ao Estado e à União, cabendo aos municípios catalisarem as oportunidades oferecidas pelos arranjos de economias criativas presentes em seus territórios.