Editorial: A sustentação do assédio

O caso noticiado, tendo no centro o prefeito recém-afastado de Uruburetama, é exemplo superlativo de uma situação que está longe de ser rara. Crimes como os de assédio sexual e estupro, tendo mulheres como vítimas, são inaceitáveis, porém frequentes. Que a situação em questão tenha acontecido ao longo de anos, e seguido mesmo após ter sido denunciada e tornada de conhecimento público, é também exemplar. Ajuda a entender não a psicologia e o caráter daqueles que cometem crimes do tipo, mas torna visíveis os pilares ocultos que dão sustentação a tal violência.

Um deles é o evidente abuso do poder. Este pode ter as mais variadas naturezas, valendo destacar o poder político, que vai além da autoridade investida por um cargo e inclui os contatos e a influência exercida em diversas frentes da administração pública; e o de natureza econômica, que não raras vezes se imbrica com a política em trocas de favores à margem da ética e da legalidade.

A certeza da impunidade é o reconhecimento, por parte de quem comete crime ou contravenção, das estruturas que protegem seus atos; dos apoios que ignoram a gravidade das transgressões e simulam normalidade onde ela inexiste; e dos preconceitos contra a mulher, que insistem em colocar vítimas no lugar destinado aos culpados.

Há ainda outra dimensão a ser considerada quanto aos abusos de poder: o da autoridade profissional. No caso citado, o acusado se valeu de falsos procedimentos médicos, para cometer abusos com um número ainda desconhecido de mulheres, mas certamente superior a uma dúzia de vítimas. Apoiou-se no bom nome que a categoria goza junto aos pacientes e na ignorância daqueles que procuravam auxílio especializado.

Ações do tipo devem ser objeto de repúdio por seus pares, dado o mau uso de procedimentos, ambientes e relações de confiança próprios da área médica. A imposição de sanções cabíveis, no âmbito profissional, é uma resposta a ser dada à sociedade, em respeito às vítimas, numa afirmação do compromisso com a lei e a ética.

O assédio sexual é problema da maior gravidade e sua disseminação exige respostas enérgicas e o fortalecimento de redes de acolhimento para mulheres. Pesquisa realizada pelo Datafolha já registrou que mais de 40% das brasileiras relatam ter sido vítima de assédio sexual em algum momento de sua vida. O índice de vítimas encontrado entre as mais jovens é ainda maior, chegando a 56%, para aquelas que têm entre 16 e 24 anos. Os assédios se dão em nível verbal e físico. São invasões do espaço e da integridade feminina que não podem ser minimizadas e tratados como o que não são: algum tipo de socialização não violenta.

O Ceará dispõe de uma rede de enfrentamento à violência contra as mulheres, congregando instituições como a Defensoria Pública do Estado, Secretaria de Segurança Pública, o parlamento cearense e a seção local da Ordem dos Advogados do Brasil; e da Casa da Mulher Brasileira no Ceará, parceria do Estado com a União, que concentra assistências fundamentais para apoiar vítimas a enfrentarem os mecanismos que as violentam. O papel do poder público, contudo, só terá êxito com apoio dos cidadãos, zelosos de valores que respeitem as mulheres e, sob nenhum pretexto, tomem por normal a violência contra elas.