Dissonância cognitiva e juiz de garantias

Muito embora esteja suspensa, por decisão do Supremo Tribunal Federal, a eficácia dos dispositivos legais relativos ao juiz das garantias, estes, mais cedo ou mais tarde, entrarão em vigor e serão realidade na nossa rotina forense

Tomamos decisões diariamente. Escolhemos profissões, iniciamos relacionamentos, compramos carros e imóveis. Se alguma dessas decisões começa a apresentar problemas, tendemos a focar nos aspectos positivos dela, como forma de justificar a escolha e preservar uma coerência interna. O emprego, apesar de exaustivo, paga bem; o orçamento doméstico está bem apertado com o pagamento das parcelas da casa, mas não é mais necessário pagar aluguel.

Todo ser humano esforça-se para manter um estado de coerência consigo mesmo. A busca pela coerência (consonância), portanto, é a regra. Tem-se por exceção a aceitação de incoerências (dissonâncias). Isso porque, normalmente, ao enfrentarem incoerências, as pessoas tentarão reduzi-las, racionalizando-as, a fim de manter a coerência por estarem diante de uma situação psicologicamente incômoda. Outra ilustração seria a do fumante que, mesmo cônscio das consequências negativas do hábito, enaltece o discurso de que o prazer em fumar compensa correr o risco. Assim, prosseguir no vício torna-se coerente com suas ideias sobre o fumo, independentemente de ter ciência do risco à sua saúde. Trata-se da chamada "dissonância cognitiva", teoria que, segundo Leon Festinger, explica o fato de as pessoas tentarem reduzir ou racionalizar certas incoerências diante de uma situação psicologicamente problemática.

Tal reflexão relaciona-se ao Direito Penal a propósito da figura do juiz de garantias, inserido na nossa legislação processual por meio do chamado Pacote Anticrime (Lei n. 13-964/19), apesar de suspensa sua aplicação temporariamente por decisão do ministro Luiz Fux, do STF. Basicamente, o juiz de garantias é aquele responsável pelas decisões relativas à fase investigatória da persecução penal, isto é, quando ainda não há denúncia oferecida pelo Ministério Público, devendo realizar o controle da legalidade da investigação criminal e resguardar os direitos individuais dos investigados. Muito embora esteja suspensa, por decisão do Supremo Tribunal Federal, a eficácia dos dispositivos legais relativos ao juiz das garantias, estes, mais cedo ou mais tarde, entrarão em vigor e serão realidade na nossa rotina forense.

Pois bem. Retomando a discussão sobre a dissonância cognitiva, o jurista alemão Bernd Schünemann destaca dois elementos que se aplicam ao âmbito do Direito: o efeito inércia ou perseverança e a busca seletiva de informações. A inércia diz respeito à tendência do magistrado de confirmar as ideias expostas por quem realiza a investigação, na qual a defesa pouco pode fazer frente às diligências investigativas. Trata-se de um momento em que as autoridades que investigam dispõem de maior liberdade para reunir provas dos fatos tidos como criminosos.

O efeito inércia vai além da confirmação das hipóteses lançadas ao longo da investigação, com as quais o magistrado teve contato. Não se trata apenas de uma dissonância cognitiva baseada no contato do juiz com as informações do inquérito, sendo relevante ainda a sua participação ativa ao longo da apuração criminal, como nos casos de decretação de prisão preventiva ou de medidas invasivas como a de busca e apreensão. Muito embora, na teoria, a decretação de prisão preventiva ou de medidas cautelares diversas não signifique o reconhecimento da culpa do investigado, o impacto dessas é inegável, principalmente pela exploração midiática do processo penal.

Além disso, há uma busca seletiva de informações: o juiz costuma buscar dados que confirmam a hipótese acusatória, a qual quase sempre parte da polícia judiciária e é confirmada pelo Ministério Público em sua denúncia apresentada ao Poder Judiciário.

Dessa forma, a confirmação dessa hipótese é muito mais confortável ao magistrado.

Leandro Vasques
Advogado criminal


Assuntos Relacionados