Decisões judiciais e bom senso

Para evitar que ficassem um à espera do outro por tempo indeterminado, João e Pedro combinaram de se encontrar entre 16h e 4h15min, em frente à igrejinha. Pedro, cauteloso, resolveu chegar ao lugar marcado às 15h45. Assim, quando João chegasse, já o encontraria lá, pronto para começar a reunião o mais rápido possível. Quando João chegou, Pedro realmente já estava à sua espera. Qual não foi, porém, a surpresa de Pedro com a reação de João. Ao invés de ficar contente pois não teria de esperar um minuto sequer por Pedro - que se adiantara, João começou a gritar com o amigo:

- Está cancelado, can-ce-la-do. Você não aprende?! A gente combina uma hora, mas você só chega fora do horário! Cancelei uma reunião para me encontrar com você e quando chego pensando que tudo vai ser ótimo, você já está aqui me esperando.

E João foi saindo, sem se despedir de Pedro, que, como dito, esperava desde 15h45min. Ao entrar em seu carro, João disse finalmente:

- Se eu ainda marcar alguma reunião com você, espero que não faça mais a desfeita de chegar antes, fora do prazo marcado!

Se chegou até essa parte do texto, o leitor certamente estará achando que ou houve algum erro da redação do jornal ou o texto é sem lógica, pois não existe relação entre a história contada e o título acima. Entretanto, essa relação existe, e é bem próxima. Explica-se.

A história acima choca pela falta de bom senso da decisão de João, que cancelou um encontro porque seu amigo chegou antes da hora marcada. Isso porque o prazo foi estabelecido para evitar demora na chegada de ambos, para tornar mais célere o encontro. É sem sentido, portanto, desmarcar a reunião.

O Supremo Tribunal Federal, recentemente, proferiu decisão semelhante à tomada por João. Deixou de apreciar recurso ao fundamento de que este havia sido interposto ´fora do prazo´, pois nele a parte se insurgia contra decisão que, embora já constante dos autos do processo, ainda não havia sido publicada na Imprensa Oficial (AGTR nº 405.602-1 - rel. Min. Celso de Mello - Agravante: Estado do Mato Grosso do Sul - DJU I de 14.2.2003, pp. 110/111). Com isso, mesmo que a parte aja antes do que estava obrigada a agir e abdique do seu direito de interpor recurso no prazo de 15 dias depois de publicada a decisão, sua diligência será punida e seu recurso não será conhecido.

Essa decisão, em verdade, é mais desarrazoada que a de João. Pois além de ignorar a finalidade pela qual o prazo processual é estabelecido (´evitar a demora decorrente do exercício de direitos ou poderes processuais´ - cf. José Lebre de Freitas, Coimbra, Editora Coimbra, 1996, 112, n.8), ignora a inegável realidade de que a parte conhecia o teor da decisão judicial (por exemplo, porque examinou os autos do processo antes da publicação), tanto que dela recorreu.

E mais. A interposição de recurso pela parte, antes de a decisão recorrida ser publicada na Imprensa Oficial, a ninguém prejudica. Com efeito, não prejudica a parte contrária, nem o Poder Judiciário. Assim, deixar de conhecer o recurso sob o fundamento apontado na decisão implica impor ao jurisdicionado penalidade inteiramente desnecessária e, portanto, desproporcional, em violação à própria Constituição Federal, que consagra o princípio da proporcionalidade.

Não fosse o paralelo feito entre a decisão de João e a do STF, a falta de bom senso desta última decisão não seria sentida com a mesma intensidade. Muitas pessoas imaginam que como as leis podem criar ficções e como algumas decisões judiciais são tomadas com base nessas ficções, tanto umas como outras não precisam ser lógicas, nem orientar-se pelo bom senso. Enganam-se os que assim pensam. As leis e as decisões judicias, como atos da vida, feitos com a intenção de organizá-la e melhorá-la, forçosamente, devem guiar-se pela lógica e pelo bom senso, sob pena de se admitir que o Direito, ao invés de ser útil e servir para trazer segurança jurídica e promover a justiça, serve como instrumento de arbítrio, desordem e insegurança.

A autora é advogada, membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários