Cultura em cinzas

O incêndio catastrófico no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, sintetiza a negligência do Estado Brasileiro com a cultura, a ciência e a memória. Trata-se de uma tragédia prenunciada, pois essas áreas estão em chamas há muito mais tempo, agonizando na longa espera de recursos que não chegaram.

Embora ainda não haja um inventário completo sobre as perdas, o acervo consumido pelo fogo é de riqueza inestimável. Fundado há 200 anos por Dom João VI, o Museu Nacional abrigava 20 milhões de peças, as quais começaram a ser compiladas pela família real. Ao longo de dois séculos, o conjunto foi engrandecido por meio de coletas, escavações, permutas, aquisições e doações.

Estavam conservados ali artigos geológicos, paleontológicos, botânicos, antropológicos, arqueológicos e culturais insubstituíveis, aos quais pesquisadores, estudantes e a população em geral nunca mais terão acesso.

A infinidade de raridades incluía, por exemplo, o fóssil humano mais antigo encontrado nas Américas, com aproximadamente 11.500 anos; o primeiro fóssil de dinossauro montado no País, a primeira coleção de múmias egípcias da América Latina. Enfim, a tragédia priva não só o Brasil, mas o mundo desses artefatos singulares.

As causas do incêndio ainda serão investigadas. Mas é fato que o imóvel visivelmente necessitava de reforma. A sua estrutura, com o teto e o piso de madeira, favorecia o alastramento das chamas. Os problemas de conservação vinham impedindo os visitantes de conhecer algumas seções do prédio, contudo, nem mesmo sua manifesta deterioração foi suficiente para sensibilizar as autoridades. O museu dependia de um repasse anual de R$ 550 mil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mas há três anos recebia apenas 60% do valor. A própria equipe do museu chegou a solicitar ajuda financeira da população, em uma campanha na internet.

Nunca é demais lembrar que o Rio de Janeiro, mesmo sendo um dos estados com maior capacidade de geração de receitas, enfrenta uma calamidade financeira resultante de anos consecutivos de abusos cometidos por seus gestores, alguns dos quais se encontram encarcerados.

Mas o descalabro na cultura e na ciência está longe de ser uma questão apenas carioca. Nos ciclos de arrocho orçamentário, a União e os estados costumam olhar de imediato para esta rubrica. É a favorita dos gestores na hora de efetuar cortes severos e suspender verbas, o que acarreta o sucateamento de prédios e equipamentos culturais históricos.

Após a tragédia, com o acervo em cinzas, de nada adianta a chuva de declarações lamuriosas de governantes se, quando realmente importava, eles não fizeram o que precisava ser feito para preservar a cultura e incentivar a ciência.

A União, mesmo em crise financeira, possui um orçamento de mais de R$ 3 trilhões. A verba necessária para garantir a sustentação do Museu Nacional era ínfima, se comparada à importância imensurável do conteúdo que ele armazenava. Dinheiro, há; o que não há é a alocação correta dos recursos.

Um País que coloca a cultura, o conhecimento e a memória como compromissos secundários vira as costas para o seu próprio passado. Sem estudar o que ocorreu no pretérito, dificilmente o Brasil encontrará a vereda correta para o futuro. Nas palavras de José Saramago: "Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir".