Armas e segurança pessoal no Decreto Bolsonaro

O Senado Federal votou contrariamente ao Decreto n.º 9.785, de 07 de maio de 2019, do presidente Jair Bolsonaro. Nem a alteração desta norma por outro Decreto, de n.º 9.797, foi suficiente para garantir sua aprovação. A deliberação final será da Câmara de Deputados.

Embora a ampliação do porte e da posse de armas de fogo tenha relação com a segurança pública, os decretos de maio parecem privilegiar a expressão individual do direito à autodefesa eficaz. Assim, menos por falência das polícias investigativa e ostensiva, e mais como reconhecimento do direito inerente ao ser humano de proteção e defesa, quis o Governo aproximar os cidadãos das armas de fogo, não mais como vítimas. Ergueu-se com isso, porém, cortina de fumaça.

A construção teórica se apoia muitas vezes em imagens de domicílios invadidos por malfeitores e mulheres violadas, sem poder oferecer resistência eficiente ao agressor. O que não fica dito é que estas ocorrências são estatisticamente pouco relevantes e uma política pública não pode estar apoiada na exceção. Por outro lado, omite-se o fato de que armas em residências têm reflexos diretos no aumento de suicídios e feminicídios.

O único ambiente em que o decreto poderia ter apoio social mais relevante seria exatamente o da defesa do lar e da família, valores caros aos próceres deste Governo e à população em geral. Todavia, as medidas ampliam-se para além das residências e dos locais de trabalho, extravasam para as ruas, fosso do qual a opinião pública parece não querer retirar as novas ordens presidenciais.

Dito isto, gostaria de analisar alguns dispositivos do Decreto n.º 9.785, mesmo que o faça no apagar de suas luzes:

1. O §5.º do art. 3.º e o §5.º do art. 5.º dispõem de modo contraditório sobre temas afins. O primeiro dispositivo afirma dever ser feito cadastramento de armas sem numeração ou com numeração raspada, embora mais à frente se diga que fica vedado o registro ou a renovação de registro destas armas. Note-se que a posse ou o porte de arma sem numeração, com numeração adulterada ou suprimida é crime punido com três a seis anos de reclusão;

2. O art. 14, ao determinar a cassação de autorização de posse e porte de arma de fogo quando o titular passa a responder a inquérito ou processo criminal por crime doloso excluiu os integrantes das Forças Armadas, dos órgãos de segurança pública, incluindo guardas municipais, além dos agentes de Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e do Gabinete de segurança institucional (GSI) da presidência da República. A norma anterior (art. 67-A do Decreto n.º 5.123, de 2004) não fazia essa distinção. Assim, membros das Forças Armadas e da segurança pública em todos os entes da federação, ainda que respondam a inquéritos e processos criminais por crimes dolosos, mantêm autorização para posse e porte de arma de fogo;

3. O exercício de atividades profissionais de risco, requisito para obtenção de porte de arma de fogo, foi reconhecido até mesmo para agentes de trânsito, conselheiros tutelares e quaisquer detentores de mandato eletivo, além de advogados, oficiais de justiça, membros do Poder Judiciário e Ministério Público (art. 20 §3.º). Mais a frente, porém, dispõe o Decreto que a autorização para portar arma de fogo para quem exerce atividade de risco ou tem ameaçada sua integridade física não será concedida para armas de fogo portáteis e não portáteis (§6.º do art. 20), salvo para caçadores (§8.º do art. 20);

4. Afastou-se a proibição constante do art. 26 do Decreto 5.123 quanto ao porte em locais públicos, como igrejas, escolas e estádios. Assim, quem tiver autorização para portar arma de fogo, poderá carregá-la mesmo em ambientes públicos ou com aglomeração. Desnecessário dizer que o risco é multiplicado nesses casos;

5. Adolescentes a partir de 14 anos poderão praticar tiro esportivo, nos locais autorizados e com a aquiescência dos pais (§6.º do art. 36), embora tenha sido mantida a idade mínima de vinte e cinco anos para aquisição e registro de arma de fogo (art. 9.º, II). Difícil entender a razão de permitir a adolescentes o contato prematuro com armas de fogo, senão pelo desejo de criar ambiência cultural distinta, mais afeita e próxima ao modelo estadunidense.

A relevância do tema do porte e da posse de armas de fogo, ainda que venham a ser derrotados os decretos de maio pelo Congresso Nacional, não se perderá. Não fica afastada a possibilidade de o governo voltar à carga, municiando-se de novos argumentos para edificar a nova ordem social que parece desejar implantar, partindo da liberdade individual e do direito de autodefesa, sem atentar, primariamente, à reforma das políticas públicas de segurança.