A morte dos abandonados

Se muitos têm mausoléus riquíssimos nos cemitérios, com anjos de mármore, cruzes e retratos em relicários, outros nem sequer contam com um pedaço de chão para chamar de seu, quando partem. São os esquecidos da sorte ou da deusa Fortuna da mitologia romana. Nabucodonosor, por exemplo, mandou construir os Jardins Suspensos para nele encerrar o corpo da esposa e, de tão magnificente, o monumento foi contado entre as Sete Maravilhas do mundo antigo. 

Diferentemente desse rei e dos faraós egípcios, com suas monumentais pirâmides, outros, vitimados pela violência ou pela morte natural imprevista, ficam nas geladeiras do IML, à espera de quem reclame o corpo para sepultamento. E se ninguém aparece, tal ausência leva o órgão competente sobre a verificação de óbitos a emitir nota, cientificando sobre a existência de um morto e fixando data para o seu recolhimento. Se tal não vier a ocorrer no prazo fixado na publicação, o corpo será destinado para fins de estudo de Anatomia. 

Aquele corpo atrairá então sobre si o olhar atento de moças e rapazes, ávidos por conhecerem os segredos das entranhas humanas. Os segredos da carne, dos músculos e das vísceras. Os dramas interiores continuarão silentes. Só a parte carnal será desvelada. A espiritual, não. Porém, hoje ou mais tarde, a porção espiritual será “necropsiada”, conforme a promessa Divina. 

Leonardo Da Vinci costumava recolher cadáveres nas noites de Roma, para realizar necropsias, sendo por isso considerado um dos pioneiros nos estudos da Anatomia Humana. À época, a prática era considerada vilipêndio, e sujeitava o autor a pesadas penas. Eram corpos também de indigentes e de abandonados, largados ao frio da noite. Se por ventura alguma lágrima cair dos olhos de algum jovem estudante durante a necropsia, seja em lembrança destes muitos servidores da Ciência ignorados pelo mundo.


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