'Ninguém pode ignorar um mercado de 1,2 bilhão de pessoas', diz presidente da África do Sul

Em entrevista na quinta-feira (14), em Brasília, depois de participar da cúpula do Brics, Cyril Ramaphosa minimizou as visões conflitantes dentro do bloco e discorreu sobre os 25 anos do fim do apartheid em seu país

Escrito por Folhapress ,
Legenda: Cyril Ramaphosa
Foto: AFP

Os países que ignorarem o potencial de crescimento do continente africano perderão oportunidades de negócios, afirma o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa.  "Você não pode ignorar um mercado de 1,2 bilhão de pessoas. Mesmo que queira fugir do continente e ignorá-lo, vai precisar negociar com ele", responde o líder africano ao ser questionado sobre a falta de prioridade dada pela política externa do governo Jair Bolsonaro à África.

Na noite de quinta-feira (14), em Brasília, depois de participar da cúpula do Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e de uma breve reunião bilateral com o presidente brasileiro, Ramaphosa concedeu entrevista conjunta à Folha de S.Paulo e à rede South African Broadcasting Corporation. Nela, o mandatário sul-africano minimizou as visões conflitantes dentro do Brics e discorreu sobre os 25 anos do fim do apartheid em seu país. 

Confira, a seguir, entrevista com Cyril Ramaphosa:

A política externa do governo Bolsonaro deixou as relações com o continente africano em segundo plano. Como vê esse cenário?

Fazer parte do Brics é algo que foca não apenas a África do Sul, mas a África. O Brasil precisa lidar com a África do Sul como uma representante dos outros países africanos.
A nossa presença no Brics deve ser percebida quase como uma procuração para a África. É por isso que falamos tanto sobre a Área de Livre Comércio da África Continental.

Você não pode ignorar um mercado de 1,2 bilhão de pessoas. Mesmo que queira fugir do continente e ignorá-lo, vai precisar negociar com ele. Nesse sentido, a África do Sul é como o ponto de entrada do continente africano. Algumas vezes as pessoas podem querer ignorar a África, mas eles fazem isso por sua conta e risco. Vão perder. 

Várias empresas do Brics já estão vendo a África como a nova área de crescimento no mundo. No final, os negócios nos países do Brics vão acabar arrastando os seus países para a África.

Na África do Sul já temos ônibus e maquinaria que são produzidos no Brasil. Nós até mesmo comemos frango brasileiro. E muitos outros países vão comer frango brasileiro no futuro. Então você não pode fugir da África, é preciso estar lá.

O Brasil adotou nesta cúpula do Brics algumas posições dos EUA, e isso teve resultado na declaração final, que não tocou em temas como o conflito entre Israel e Palestina. Como essa mudança de posição do Brasil foi percebida na reunião?

Não é que o Brasil esteja articulando posições dos Estados Unidos. É mais o Brasil falando sobre a sua própria situação. O Brics acomoda e compreende o ponto em que cada um de nós está.

Nas nossas mentes, nós nunca olhamos para o Brasil por meio do prisma dos EUA. Nós olhamos para o Brasil e negociamos com o país a partir do que ele tem a oferecer em um determinado momento.

Então se não mencionamos outras situações ou países [na declaração], não significa que eles não importam para o Brics. Apenas significa que nós estamos focando os assuntos do momento. E o sistema multilateral é no que todos nós [no Brics] acreditamos.  

Mas o fato de a crise na Venezuela não ter sido mencionada na declaração não deixa evidente posições divergentes sobre esse assunto?

Não. No final nós precisamos alcançar um consenso, o que significa que todos nós precisamos concordar. O fato de [a Venezuela] não ter sido mencionada não significa que nós não a consideramos importante.

Basicamente significa que nós olhamos para aquilo que nos une. Nós não focamos temas que, por exemplo, não estamos na mesma linha. De que serve sair por aí dizendo que não concordamos nisso ou naquilo? Isso significaria que estamos brigando. 

E o Brics é uma associação de países que estão unidos ao redor de certos interesses, visões e objetivos. Então focamos mais o que nos une e menos os temas em que não concordamos. 

Quando foi criado, o Brics foi visto como a alternativa para os fóruns internacionais que tinham os EUA e a União Europeia. O bloco hoje está à altura dessas expectativas?

O Brics é um grupo único de países e estamos à altura das expectativas originais. Fomos muito além do que outra associações fizeram no passado. Conseguimos formar outras instituições, como o Novo Banco de Desenvolvimento. Ele começou a operar, tem uma forte base de capital, com projetos em todos os países do Brics. Na África do Sul, está colocando à disposição US$ 2,5 bilhões para apoiar vários projetos.

E o banco também irá além do Brics, para apoiar projetos em vários outros países. No nosso caso, nós estamos endossando projetos em vários países africanos.

Passaram-se mais de 25 anos desde o fim do apartheid, mas a África do Sul ainda é um dos países mais desiguais do mundo. Considerando que o CNA [Congresso Nacional Africano, partido de Ramaphosa] está no poder desde então, no que o governo falhou?

Não é tanto sobre onde houve falha. É o legado da nossa própria história e o modo como a economia foi construída. A nossa economia foi montada para cuidar de uma pequena minoria, de 15% a 20% das pessoas do país, deixando de fora entre 80% e 85% da população.

Precisamos fazer com que a vida desses 80% melhore. A pobreza diminuiu, mas reduzir a desigualdade é um objetivo de longo prazo. É nisso que estamos trabalhando agora.

Se você quer reduzir a desigualdade, é preciso focar a educação e uma economia que funcione para todos. É preciso olhar para as forças motoras da economia. A nossa economia ainda é muito assimétrica, de propriedade de uma minoria. 

A educação foi uma das áreas em que o apartheid mais atuou: garantiu que os negros no nosso país não tivessem uma educação decente. Isso gerou uma desigualdade enorme, e nós tivemos que reformar esse sistema. Esperamos ver avanços nos próximos anos.

Embora no Brasil também exista forte desigualdade entre negros e brancos, o presidente Bolsonaro é um crítico de ações afirmativas, como cotas para o ingresso de negros nas universidades. Qual é a sua posição?

Não cabe a mim criticar o que o Brasil tem feito. Acho que cada país tem que fazer aquilo que é o melhor para os seus cidadãos. No nosso caso, as ações afirmativas têm sido quase um imperativo constitucional.

A Constituição estabelece que nós devemos levar em consideração os erros cometidos no passado para garantir igualdade de oportunidades. E para isso precisamos afirmar aqueles que nunca tiveram oportunidades. 

Se não tivéssemos usado a cláusula de igualdade da nossa Constituição, nunca teríamos visto o aumento de jovens nas universidades e nas escolas técnicas que temos hoje. Não é possível desfazer os erros do passado sem corrigir os desequilíbrios desse mesmo passado.

No nosso caso ainda vai levar tempo para chegarmos à posição em que todos tenham oportunidades semelhantes. Porque a desigualdade foi construída para que os sul-africanos brancos tivessem as oportunidades para adquirir ativos e educação.

Os sul-africanos negros nunca tiveram ativos ou oportunidades. Havia leis que determinavam que eles nunca deveriam ter essas oportunidades. Aí foi criada a brecha da desigualdade. E nós temos que fechá-la com ações afirmativas e outras intervenções.

Matamela Cyril Ramaphosa, 67
Presidente da África do Sul desde a renúncia de Jacob Zuma em 2018, Ramaphosa foi um militante anti-apartheid quando era um estudante universitário. Próximo ao ex-presidente Nelson Mandela, ele atuou durante anos como líder sindical e depois começou uma carreira empresarial.

De volta à política em 2012, Ramaphosa foi vice-presidente do país e, em maio, liderou a sexta vitória consecutiva do CNA desde o fim do apartheid. Embora tenha assegurado maioria parlamentar, foi a menor proporção alcançada pelo partido desde 1994.