Corte de tarifas que Brasil avalia no Mercosul seria catastrófico, diz Ricupero

"Ora o Paulo Guedes aparece contra o Mercosul, ora ele aparece com ideias que soam utópicas", critica o embaixador e ex-ministro da Fazenda do governo Itamar Franco

Escrito por Folhapress ,
Legenda: Rubens Ricupero
Foto: Unisinos

Reduzir as alíquotas de importação, como propõe o governo Bolsonaro para o Mercosul, seria uma "catástrofe" para a indústria brasileira, segundo Rubens Ricupero, embaixador e ex-ministro da Fazenda do governo Itamar Franco.

Ricupero, que participou da implantação do Plano Real, disse que o país ainda está muito longe de ter atingido estabilidade econômica e não tem a competitividade necessária para enfrentar o mercado sem essas tarifas.

"Eles [governo e equipe] podem começar, como a própria indústria tem dito e como se faz no mundo inteiro, por etapas, e não como um choque", afirmou. Disse ainda que uma mudança radical na estrutura do Mercosul, com a saída de algum país, pode afetar o acordo fechado com os europeus.

"Se houvesse um abalo mais radical na estrutura do Mercosul, é claro que esse acordo, que já vai ter muita dificuldade de entrar em vigor por causa daqueles problemas ambientais do Brasil, ficaria ainda mais remoto de ocorrer."

Confira, a seguir, a entrevista com Rubens Ricupero:
Como o senhor avalia a fala do presidente Bolsonaro sobre suspender a Argentina do Mercosul, caso o país resista à abertura comercial?

Rubens Ricupero - Achei as declarações um pouco fora de propósito, gratuitas e precipitadas. Porque até agora não houve uma proposta brasileira [para redução da Tarifa Externa Comum, a TEC], nem se tem ideia exata de como o futuro governo da Argentina reagiria a isso. Então é tudo muito hipotético.

Em diplomacia não se trabalha com hipóteses dessa maneira, sobretudo em público e de uma forma até agressiva, como ele disse que isolaria a Argentina. Na verdade, se de fato o Brasil fizer essa proposta de redução da barreira da TEC, e o governo argentino for contra, não há como contornar essa decisão dentro de um organismo como o Mercosul, que é uma união aduaneira.

No passado, já houve momentos em que o Brasil é que era o obstáculo, e os outros três queriam negociar um acordo com os Estados Unidos, e nem por isso eles avançaram.

Não há mecanismo para permitir que essa regra seja aderida apenas por alguns países, e não por todo o bloco?
RR - Poderia se houvesse uma alteração da natureza do Mercosul, como alguns dizem que, em vez de ser uma união aduaneira, o bloco passasse a ser simplesmente um acordo de livre-comércio. O que é um retrocesso em termos de integração comercial.

[Isso porque] a união aduaneira é a forma mais ambiciosa que existe de integração comercial. Ela permite que todos os integrantes do grupo tenham a mesma barreira em relação ao mundo exterior e que por isso mesmo nenhum dos membros do grupo pode isoladamente negociar redução de tarifas com terceiros. Já o acordo de livre-comércio permite essa negociação com terceiros, porque é uma fórmula mais flexível, mas não tão avançada.

Em geral quando se tem uma união aduaneira, é um passo antes do mercado comum, que é o que se tem na Europa. Para se ter esse mercado comum é preciso que estejam abolidas todas as barreiras de tarifas para mercadorias e serviços.

Voltar para o livre-comércio no Mercosul seria um retrocesso também para a abertura de mercado?
RR - Não necessariamente, porque você poderia até multiplicar os acordos de livre-comércio com quem quisesse, sem depender dos outros parceiros. Agora em relação àquele sonho de criar na América do Sul uma espécie de mercado comum, isso sim se perderia. Seria um retrocesso do que foi sempre o propósito último do Mercosul.

Mas é contraditório isso, porque o próprio Paulo Guedes já chegou a aventar uma ideia de ter uma moeda comum. Os europeus só chegaram a ter uma moeda comum depois de ter um mercado comum, e nem todos os europeus pertencem a zona monetária.

Então é curioso isso, ora o Paulo Guedes aparece contra o Mercosul, ora ele aparece com ideias que soam utópicas, porque para ter uma moeda comum é preciso ter uma uniformidade de políticas econômicas, e nós estamos muito longe de ter isso no bloco.

Dá para o Brasil sair do Mercosul quando bem entender?
RR - Teoricamente, tudo é possível. Agora, haveria consequências.

O mercado argentino absorve uma porcentagem altíssima das exportações de manufaturas do Brasil. No caso de automóveis supera 50%. Então como você abre mão desse mercado, de uma hora para outra?
Você vai fazer o que com a indústria automobilística, no momento em que o desemprego está como está? Porque é a primeira consequência disso seria agravar o desemprego.

Se houver a saída de algum país, o acordo com a União Europeia pode ser afetado?
RR - Se houvesse um abalo mais radical na estrutura do Mercosul, é claro que esse acordo, que já vai ter muita dificuldade de entrar em vigor por causa daqueles problemas ambientais do Brasil, ficaria ainda mais remoto de ocorrer.

No passado, a União Europeia deixou claro que só tinha interesse em fazer o acordo com o Mercosul, e não com os países individuais. Pode ser que no futuro ela mude, mas essa é que é a posição tradicional dela.

Então afeta de uma maneira substantiva porque deixa de existir um dos parceiros. Mas é por isso que eu não acredito [na saída de países do bloco]. Acho que na prática vai prevalecer uma atitude mais realista.

Como o senhor vê o projeto de redução da TEC?
RR - É contraditório também, porque propõe reduções muito fortes para a indústria, que já está combalida, e reduções muito menores para o setor do agronegócio, que é um setor muito mais forte.

Por exemplo, no caso do vinho, que é área do Rio Grande do Sul, de interesse do Onyx Lorenzoni [ministro da Casa Civil], propõe-se uma tarifa de 20%, que é muito alta. No caso da banana, que é de interesse do Bolsonaro, porque a família dele é do Vale do Ribeira, também não há nenhuma proposta mais audaciosa. Então ela é muito centrada na indústria, que é o setor que está mais frágil, e exclui setores do agronegócio, porque são de interesses eleitorais ou políticos do governo.

Se ele ocorrer, então, não vai ser bom para o Brasil?
RR - Acho que ele é um torpedo abaixo da linha d'água, algo catastrófico. Porque a situação da indústria aqui ainda é muito claudicante. O país ainda está muito longe de ter atingido estabilidade econômica. O câmbio é muito volátil, a estrutura tributária complexa. Então todos esses elementos afetam a competitividade do Brasil.

Eles podem começar, como a própria indústria tem dito e como se faz no mundo inteiro, por etapas, e não como um choque. Também acho que o Brasil não deveria fazer isso de maneira unilateral. Nenhum país faz concessões unilaterais. Isso é uma ideia de teóricos, mas na prática, mesmo esses países que tem uma estrutura mais aberta negociam. É o que o Trump faz o tempo todo.