Bolívia: Evo Morales, uma raposa política vítima de sua própria ambição

Primeiro presidente indígena ficou quase 14 anos no poder graças à astúcia política e à bonança econômica resultante da exportação de matérias-primas à China

Escrito por José Arturo Cárdenas, da AFP, em La Paz ,
Legenda: Evo Morales deixa o poder após perder o apoio dos militares e após três semanas de protestos nas ruas
Foto: Foto: AFP

Evo Morales, que até este domingo (10) era o presidente latino-americano há mais tempo no poder, renunciou pressionado por denúncias de fraude e após perder o apoio do Exército e da Polícia, depois de três semanas de protestos na Bolívia contra a sua reeleição.

Podendo deixar a Presidência com um alto índice de popularidade, Morales preferiu se empenhar para permanecer no poder, mesmo depois de a população se manifestar em um referendo em 2016 contra sua reeleição. No entanto, uma grande maioria reconheceu até o final que o primeiro presidente indígena da Bolívia levou progresso econômico e social a um dos países mais pobres da América Latina.

"Estamos deixando a Bolívia com muitas conquistas sociais", disse Morales em discurso à nação pela TV, em que anunciou sua renúncia na tarde deste domingo.

"Lamento muito este golpe cívico. Quero dizer-lhes, irmãos e irmãos, a luta não termina aqui. Vamos continuar com essa luta pela igualdade, pela paz", declarou.

Em quase 14 anos no poder, demonstrou astúcia política, empatia com os pobres e boa gestão da bonança econômica resultante da exportação de matérias-primas à China. Mas sua polêmica reeleição em primeiro turno em 20 de outubro, qualificada de fraudulenta pela oposição, fez com que milhares de bolivianos saíssem às ruas para pedir sua renúncia.

A reação de Morales, de 60 anos, foi denunciar uma tentativa de "golpe de Estado" e pedir a seus seguidores que defendessem os resultados eleitorais.

No entanto, em uma sucessão de fatos vertiginosa, Morales optou na manhã deste domingo por convocar novas eleições - sem esclarecer se seria candidato - após um relatório da auditoria eleitoral da OEA, que recomendou a anulação das eleições por "irregularidades" no processo.

Sobrevivente da onda "bolivariana" 

Em janeiro de 2006, este político egresso do sindicalismo cocaleiro se tornou o primeiro presidente indígena da Bolívia, em meio a uma onda de vitórias da esquerda na América Latina.

Seus aliados foram ficando pelo caminho em Brasil, Argentina e Equador. E a Venezuela, país com o qual Morales mantém um estreito vínculo, está mergulhada na pior crise política e econômica de sua história recente.

Mas "a Bolívia é diferente, estamos bem", dizia Morales, e seus seguidores, convencidos, repetiam palavras.

O chefe de Estado aimara e aliado político e Cuba e Venezuela estava empenhado em conquistar o quarto mandato até 2025, um verdadeiro recorde na Bolívia desde a independência, em 1825. Proclamou tê-lo conseguido no primeiro turno sobre oito candidatos opositores, entre eles o ex-presidente Carlos Mesa (2003-2005).

Um líder com palácio próprio

Os opositores criticavam em Morales um caráter teimoso, o que o impedia de reconhecer seus erros, e o acusavam de incorporar um governo antidemocrático que está empurrando o país para ser uma "segunda Venezuela" na região, enquanto seus simpatizantes atribuem a ele o dom da infalibilidade.

É uma raposa política, que conseguiu aproveitar principalmente a prosperidade econômica do país, após decretar a nacionalização dos hidrocarbonetos, poucos meses depois de assumir o poder.

O vice-presidente Álvaro García, que acompanha Morales desde 2006, garantiu, no final de 2013, que "o presidente Evo é a unidade do corpo de Túpac Katari (líder aimara desmembrado em 1781) e "a ressurreição do povo indígena". 

Neste domingo, após a renúncia, reforçou: "Vamos cumprir a sentença de Túpac Katari, voltaremos e seremos milhões", prometeu García Linera, parafraseando a famosa citação de Katari antes de ser executado por rebelião e ter seu corpo esquartejado.

Em 2018, Morales abriu a "Casa Grande del Pueblo", um arranha-céu de 29 andares com heliporto que chama atenção no centro histórico de La Paz e que substituiu o Palácio Quemado, sede do poder político desde o século XIX, como a nova sede presidencial. 

O prédio é conhecido na Bolívia como "o Palácio de Evo".

Premonições

Morales conheceu a pobreza desde que nasceu, em 26 de outubro de 1959, no povoado de Isallavi, na região andina de Oruro. Criador de lhamas quando criança e depois vendedor de sorvete, fabricante de tijolos e trompetista de um grupo de música local, chegou a Chapare, coração cocaleiro da Bolívia, para se dedicar ao cultivo da folha.

Ali se engajou no meio sindical, onde começou sua carreira política em 1995, como deputado nacional. Em 2002 lançou pela primeira vez sua candidatura presidencial, chegando em segundo lugar.

Quatro anos depois, em 2006, derrotou nas urnas o candidato da direita, Jorge Quiroga, com 54% dos votos, e chegou à Presidência. 

Em 2008, durante uma entrevista para a imprensa estrangeira, Morales disse que quando era criança, aos 11 ou 12 anos, sonhou que voava por sua terra natal. 

Ao contar o sonho a seu pai, ele disse: "Evito, você vai ficar bem, respeite os maiores e menores, você vai bem em teu futuro".

Morales não chegou à universidade e têm grandes problemas para ler um discurso em público. Prefere improvisar e repetir frases sobre o sucesso econômico de seu governo, a estabilidade política e os inimigos internos (a direita) ou externos (os Estados Unidos) que "o perseguem".