Após queda de Evo, Bolívia prossegue sem definições políticas

Saída institucional é apontada como caminho por especialistas para o fim da instabilidade; contudo, eles não descartam possibilidade da ascensão de governo autoritário, após pressões inclusive das Forças Armadas por renúncia

Escrito por Redação ,
Legenda: A renúncia de Evo Morales, após pressão da população e das Forças Armadas, coloca dúvidas sobre qual será o rumo político traçado a partir de agora.
Foto: Foto: AFP

Vinte dias de protestos nas ruas da Bolívia culminaram na saída de Evo Morales da presidência do país, após 13 anos, três mandatos e uma tentativa frustrada de prosseguir na presidência. A pressão popular, iniciada menos de 24 horas após as eleições presidenciais, foi decisiva, mas a renúncia ocorreu apenas após a "sugestão" do comandante das Forças Armadas para que Morales deixasse imediatamente a presidência.

Por um lado, as críticas quanto a manobras de Morales para continuar no poder se multiplicam, como o fato de o agora ex-presidente ter desrespeitado referendo popular de 2017, em que a população rejeitou a possibilidade de quarto mandato. Além disso, a apuração de votos em que Morales foi colocado como vitorioso foi alvo de denúncias de fraude, e a Organização dos Estados Americanos (OEA) pediu novas eleições, após indícios de irregularidades.

Contudo, as manifestações de opositores ao governo de Evo Morales se radicalizaram. Governadores e políticos alinhados ao governo denunciaram estarem sendo ameaçados, terem casas invadidas e familiares agredidos. A prefeita da cidade de Vinto, Arce Guzman, chegou a ser sequestrada e foi agredida publicamente por manifestantes.

A saída

O general Williams Kaliman, comandante das Forças Armadas fez então o pedido ao então presidente Evo Morales. "Pedimos ao presidente de Estado que renuncie a seu mandato presidencial e permita a pacificação e a manutenção da estabilidade, pelo bem de nossa Bolívia", disse.

"Quando vem quem controla as armas e pede que você renuncie, não é muito um pedido. É uma exigência. A população pressionar, isso acontece. Mas quando o Exército faz isso é diferente", contrapõe o professor do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará, Clayton Cunha Filho. Ele ressalta que o mandato de Morales iria até janeiro de 2020.

Professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, Antônio Jorge Ramalho, pondera que "não foi um golpe (de Estado) no sentido clássico". "O Exército não entrou no Palácio ou atirou contra o presidente. (Mas) Não é um desfecho constitucional".

Isto pode influenciar, inclusive, também qual deve ser o futuro político da Bolívia. "O ideal seria que o resto desse processo ocorresse pelas vias institucionais, convocando as novas eleições o mais rapidamente possível. Seria o melhor dos cenários possíveis, mas não está garantido", considera Clayton Cunha Filho.

"Mas, não posso descartar que, em vez disso, passem por cima do parlamento e nomeiem alguém que não tem nada a ver. A interferência das Forças Armadas abre um precedente perigoso", completa.

O boliviano Eduardo Gabriel espera apenas que "o país acabe em boas mãos". Estudante de Engenharia de Sistema e Trabalho, ele quer principalmente a diminuição das tensões e conflitos vividos no País nas últimas três semanas.

"Já faz 20 dias que temos problemas. Tem empresas que ficam em cidades vizinhas e os trabalhadores não podiam ir a seu trabalho, entre outros problemas. É preciso que a situação melhore, porque afeta muita gente", enfatiza o boliviano.

Estratégia

Evo Morales renunciou à presidência da Bolívia apenas poucas horas depois de convocar novas eleições para a presidência. Para os especialistas, no entanto, era tarde. "Foi um erro de cálculo. Por causa da inclusão social e da redução da pobreza que ele promoveu, ele achou que teria apoio social, mas não foi suficiente", aponta Ramalho.

Um erro também de leitura por parte de Morales, considera ele. "Foi, sobretudo, a incompreensão dele do apego da sociedade boliviana com a democracia", afirma. A falta de respeito de Evo Morales com o referendo popular, explica, foi uma "leitura equivocada e até autoritária".

Oposição

Em meio aos protestos, também ocorreu uma mudança na liderança da oposição a Evo Morales.

"As coisas se radicalizaram, e Carlos Mesa, que começou com a liderança ficou a reboque", explica Clayton Cunha Filho. Considerado um político moderado, Mesa já foi presidente da Bolívia e foi o segundo colocado na disputa pela presidência do país.

"As pessoas, que antes exigiam o segundo turno, começaram a apoiar o Camacho, que tem um perfil muito mais de extrema-direita e fundamentalista cristão", continua.

Uma ascensão possível também pela ascensão cada vez maior de líderes de extrema-direita no mundo. "Essas lideranças de direita estavam adormecidas na Bolívia. Agora, você tem um cenário internacional mais favorável para isso surgir", considera ele.

Ramalho aponta que o momento político da América Latina também influenciou a renúncia, embora não considere que há uma tendência para algum espectro político, seja de direita ou de esquerda. Para ele, trata-se de uma crise de representatividade que atravessa as populações nos países sul-americanos.

"É um problema sistêmico, estrutural. E as nossas elites políticas não estão entendendo a necessidade de propor projetos políticos que fujam à polarização. É necessário propor soluções que sejam razoáveis, factíveis, democráticas".

Asilo

Evo Morales aceitou a oferta de asilo político feito pelo Governo do México ainda no domingo. Segundo o chanceler mexicano, Marcelo Ebrard, a oferta foi feita a Morales porque "sua vida e sua integridade correm perigo".

OEA

A Organização dos Estados Americanos (OEA) convocou reunião especial para esta terça (12) para discutir a crise na Bolívia. Apenas Cuba não faz parte do bloco.

Trump

O presidente dos EUA, Donald Trump, saudou a queda de Evo Morales como sinal para "os regimes ilegítimos da Venezuela e da Nicarágua" e elogiou o papel dos militares.