Voluntários aceitam doar seus corpos para a ciência

Universidades federais incentivam a doação voluntária de corpos em todo o Brasil. No Ceará, a prática ainda não é comum, mas ganha força com a implantação de uma iniciativa pioneira

Escrito por Kílvia Muniz , kilvia.muniz@tvdiario.tv.br
Legenda: Museu de Anatomia e Arte da UFC
Foto: Foto: José Leomar

Você doaria seu corpo para estudo após a morte? A maioria das pessoas nunca parou para pensar sobre o assunto. A resposta rápida, natural, é "não", seguida de uma expressão que é um misto de estranheza e susto. Assim foi com boa parte das pessoas entrevistadas, nas ruas, para a matéria. A reação é compreensível. O assunto raramente é pauta, seja na mídia, seja nas rodas familiares. Existe uma série de questões culturais, religiosas e afetivas envolvidas. Falar de morte, seja em qual dimensão for, nunca é fácil.

A situação é bem diferente da doação de órgãos, vista com mais receptividade. "Se servir para salvar alguém, se ajudar a melhorar a vida de outra pessoa, doaria com certeza", afirma a jornalista Jéssica Costa, de 39 anos. Já quando indagada sobre a doação do corpo, a resposta é outra. "Não teria coragem porque me incomoda bastante a ideia de alguém estudando meu corpo após a morte", explica.

A carioca Giselle Lopez, pensa diferente. "Decidi doar meu corpo desde quando soube que era possível", afirma a engenheira civil de 29 anos. "Não foi difícil pra mim, mas meus familiares me chamam de maluca", complementa.

A realidade é que a doação voluntária de corpos para fins científicos, por mais complexo que o tema seja, é uma possibilidade que existe em várias universidades do País, inclusive, no Ceará. Desde janeiro deste ano, a UFC implantou o Programa de Doação Voluntária que incentiva pessoas a realizarem cadastros e declararem, em vida, o desejo de contribuir para a ciência.

O debate sobre o assunto começou há três anos. E, no início, gerou polêmica. A principal dúvida para o lançamento do projeto era se haveria adesão das pessoas. Mas, para a coordenadora do programa, a professora de Anatomia da UFC, Delane Gondim, a realidade surpreendeu.

A gente percebeu que as pessoas não sabiam que isso era possível. Nem todo mundo quer, realmente, ser enterrado, ser cremado, muitas dessas pessoas têm uma ação altruísta de querer doar o seu corpo, que pode não servir mais em vida, mas vai servir exatamente para a construção de novas possibilidades de ensino na área da saúde".

Referências e argumentos

Para a implantação do programa, a UFC se inspirou na iniciativa da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. O programa da UFCSPA recebe, em média, a doação de 18 cadáveres por ano. Outra iniciativa relevante que existe, hoje, no País, é a da Universidade Federal de Minas Gerais. O programa "Vida após a Vida", implantado em 1999. Hoje, conta com cerca de 1.300 doadores cadastrados e recebe cerca de 10 corpos por ano. "A gente tinha dificuldades de obtenção, ficamos muito tempo sem ter novos corpos na faculdade e, hoje, todos os corpos utilizados são 100% de doadores", explica Humberto José Alves, diretor da Faculdade de Medicina da UFMG.

Na UFC, nessa fase inicial, já foram feitos nove cadastros e dois corpos foram doados. O desafio não é apenas sensibilizar voluntários, mas também os familiares, já que a doação, mesmo diante de uma declaração oficial, depende, em última instância, da vontade da família, considerada, por lei, a "fiel do corpo", segundo o Direito da Família, do Código Civil. Por isso, para Gondim, é fundamental que o voluntário converse sobre a sua decisão com os entes queridos.

"A gente deixa bem claro que, no programa de doação, o corpo pode seguir todo o ritual tradicional de despedida. Você pode velar o corpo. A única diferença é que, ao invés de o corpo ir para o cemitério, ele vem para uma instituição de ensino", reforça a professora. Também é possível para a família reaver o corpo. "É uma das normas do processo de doação", esclarece.

Para os alunos das áreas médicas, o estímulo é estratégico para o aperfeiçoamento da formação. "Eu penso em fazer neurocirurgia devido às habilidades que fui adquirindo após o estudo da anatomia", explica Osvaldo Pereira, do 8º semestre de Medicina da UFC.

"Imagine se um parente seu, sua mãe, fosse à emergência. Quem você preferiria que abordasse ela? Um cirurgião que durante toda a graduação aprendeu em um cadáver humano ou um cirurgião que nunca teve esse contato?", questiona.

Voluntários

Para a enfermeira paulista, Agnes Castanho, de 30 anos, a decisão de doar o corpo não foi difícil. "A ciência consegue dar utilidade pra todas as minhas partes, mesmo só para estudo", defende. A família dela respeita a decisão. "Meu irmão mais novo, inclusive, quer doar o cadáver assim como eu", explica.

Giselle Lopez já deu um passo além da decisão. Moradora do Rio de Janeiro, é cadastrada no programa de uma universidade local.

A minha família ainda leva isso muito na brincadeira. Já imprimi até o documento, disponibilizado pela universidade, e mostrei pra eles que é sério. Não levaram muita fé, mas meu marido já aceitou e tem essa concepção. Eu sempre fui desapegada. É só um corpo, eu não tenho essa posse".

Para a professora Delane Gondim, essa desmistificação do processo de morte e valorização da anatomia para os futuros profissionais da área de saúde é imprescindível. Ela acredita que "é o programa de doação de cadáver que pode manter o estudo de anatomia nas instituições médicas".

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Para doar é preciso ter mais de 18 anos. O voluntário deve, após debater o assunto com a família, entrar no site www.Anatomia.Ufc.Br, imprimir e preencher o "Termo de Doação". O documento precisa estar assinado e ter firma reconhecida.

A família também pode doar um corpo, mesmo sem que tenha havido doação em vida, preenchendo formulário e reconhecendo firma. Isso inclui fetos. Também podem ser doados órgãos oriundos de cirurgias, como amputação de membros.

A identificação dos doadores e as informações fornecidas permanecem em sigilo.

Em Minas Gerais, o programa de doação voluntária já tem 20 anos de fundação. As mulheres são maioria entre os doadores.

 

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