Transexuais e travestis resistem no dia a dia e na memória

As violações cotidianas, de desrespeito ao nome e ao corpo, muitas vezes, têm a morte como desfecho - casos que devem ser lembrados neste Dia Internacional da Memória Trans para sanar a chaga social da intolerância

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@diariodonordeste.com.br
Legenda: O mural feito por Hérika com os espelhos de maquiagem tornou-se amuleto para a mãe
Foto: FOTO: THIAGO GADELHA

Não dá para romantizar a resistência. Nos tempos atuais, a conclusão é simples: resistir é bonito, mas também dói. E se a dor do outro jamais nos pode ser alheia, como encarar o fato de que o Brasil é, novamente, neste ano, o País que mais mata travestis e transexuais no mundo? Como lembrar de Dandara, Hérika e outras tantas mortas pelo ódio, no ano passado, quando nossas mãos se sujam de novo com o sangue de Flávia, travesti encontrada morta domingo? Hoje, Dia Internacional da Memória Trans, as histórias delas nos lembram: passou da hora de sanar a chaga social da intolerância.

O Brasil matou 167 transgêneros entre 1º de outubro de 2017 e 30 de setembro deste ano, de acordo com levantamento da ONG Transgender Europe, o correspondente a 45% dos assassinatos contabilizados em 72 países. Somos líderes na maior derrota que podemos ter. No Ceará, pelo menos 19 travestis e um homem transexual foram assassinados de janeiro a dezembro do ano passado, junto aos sete gays e três lésbicas contabilizados pelo Relatório de LGBTcídios do Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, da Prefeitura de Fortaleza.

Uma das vítimas que compuseram essa dezena foi Hérika Izidório, travesti espancada na Avenida José Bastos, na madrugada de 12 de fevereiro de 2017. Após exatos dois meses internada, Hérika não resistiu: morreu em um leito do Instituto Dr. José Frota (IJF), em abril, quando viajaria a São Paulo para iniciar o tratamento hormonal e "ajudar a mãe a ter uma casinha".

Justiça

Em nota, a Polícia Civil do Ceará informou que um homem foi preso suspeito do homicídio que vitimou Hérika: Hugo Leonardo Façanha Batista, 36, com passagens pela Polícia por homicídio, latrocínio e tentativa de homicídio. Ele foi preso após ser apontado como autor do assassinato da travesti. O inquérito, segundo a SSPDS, foi concluído e remetido à Justiça. As investigações foram conduzidas pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP).

"Sabe por que ele vivia na rua? Porque ninguém dá emprego a transformista não. Só sabem julgar pelo que eles escolheram ser. Depois que ele morreu, minha vida acabou", resume Vânia Castro, 52, que não chama Hérika pelo nome social, por artigos femininos nem a reconhece como travesti, mas prova que respeitar é muito além disso. "As pessoas começaram a criticar ele, chamar de viado. Sabe o que ele dizia? 'Mãe, só ligo se a senhora disser alguma coisa comigo. Mas se a senhora me ama, tô nem aí pro resto'".

Quando soube, em uma conversa franca, que o filho se identificava, na verdade, com o gênero feminino, a cozinheira teve um sentimento só: cuidado. "Levei ele ao médico, porque achei que tava doente: mas meu filho nasceu assim. Então eu disse: 'você sabe que as pessoas matam, que não respeitam', e ele dizia que ninguém ia fazer nada", relembra, com um choro entalado de impotência e saudade.

Legado

A ausência só é esquecida e o sorriso só brota do rosto quando as lembranças trazem de volta a leveza e o carinho de Hérika. "No Ano-Novo de 1999 para 2000, ele chegou com um buquê de rosas, porque sabia que eu achava lindo. Quando ele ia comer pizza por aí, trazia logo três pedaços pra mim!", sorri Vânia.

Para a cozinheira, descrever uma filha "amiga, bondosa e companheira" é, ao mesmo tempo, defender a memória e cobrar justiça por Hérika. "Depois que ele morreu, aprendi a pesquisar sobre a vida dos 'transformistas' na rua, sobre as mães que abandonam e têm vergonha dos filhos. Eu queria ter condição para reunir essas mães e conversar pra elas deixarem desse preconceito", diz, com o tom de quem não entende a dificuldade de se respeitar a diferença.

A reunião, aliás, já existe: o grupo Mães pela Diversidade no Ceará, que inclui a jornalista Mara Beatriz, mãe de Lara, 14 - adolescente vítima de transfobia ao ser expulsa de uma escola particular de Fortaleza, ano passado. "Já tínhamos medo de violência física ou simbólica, e esse momento concretizou que a luta é pra vida toda", relembra Mara. "Ano que vem, ela vai mudar de escola. Será que vai passar por tudo de novo? Nome social, banheiro feminino, conversar com colegas, pais e funcionários sobre o respeito à diversidade?", indaga.

Por outro lado, reconhece a mãe, Lara constrói um legado. "Acabamos nos inteirando muito mais da luta dos LGBT, mergulhando de cabeça na militância. Aquele acolhimento que eu recebi na época sou capaz de passar adiante, me vejo como mãe de muitos que não têm esse amor em casa".

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