Transexuais atravessam gerações para construir luta contra violências

Da época em que manifestar a própria identidade de gênero era caminho para o cárcere até hoje, quando travestis, homens e mulheres trans ocupam todos os espaços, conquistas foram marcadas pela coletividade intergeracional

Escrito por Theyse Viana e Felipe Mesquita , metro@verdesmares.com.br
Foto: FOTOS: KID JÚNIOR

Recusar a imagem do espelho, o corte de cabelo, a roupa azul ou rosa, o brinquedo. Romper os invólucros da existência para se encontrar com a verdadeira identidade. Assim, na teoria, a luta comum a toda pessoa transexual pode parecer simples - mas ultrapassa a compreensão de quem não a vive. Sobra, então, o dever de respeitar. Esse, aliás, é o verbo-chave hoje, Dia Internacional da Memória Trans (20/11), e todos os dias: direito que várias gerações de travestis, homens e mulheres trans têm construído para mitigar as violências que ainda existem.

É na coletividade, então, onde reside a força. A lição atravessa toda a trajetória da travesti Thina Rodrigues, 57, desde que se mudou do município de Brejo Santo a Fortaleza, ao ser expulsa de casa com 17 anos de idade, e foi presa aos 20 "apenas por ser quem é". A marca da rejeição fez-se luta: fundou, junto à ativista Janaína Dutra, a Associação de Travestis do Ceará (Atrac), há duas décadas - tempo em que contribui para construir um cenário mais seguro às pessoas LGBTI+.

"Começamos a lutar pelo direito de ir e vir e de existir de todas nós. Passamos a ser protagonistas das nossas próprias histórias. A nova geração está vivendo o que construímos para ela, mas o preconceito não vai acabar. Cada menina maltratada na escola, no posto de saúde, me machuca. A luta precisa continuar", sentencia Thina, que quer ser lembrada apenas "como uma pessoa simples, lutadora, ativista e militante que vai ficar muito feliz quando as travestis e trans forem aceitas de forma plena".

Identidade

A peleja da autoafirmação cruzou também a vida da mulher trans Sílvia Cavalleire, de 27 anos. Adulta, ela conseguiu externalizar sua real identidade valendo-se das experiências de quem conseguiu ser o que o corpo, a mente e a alma indicavam. As marcas do gênero feminino, já inerentes à sua existência, conseguiram se mostrar, de fato, no dia 1º de janeiro de 2011, quando permitiu se revigorar através da transição.

"Havia me preparado para fazer uma nova vida a partir daquele Réveillon. Comprei um vestido, peguei um salto, vesti e disse que nunca mais colocaria uma roupa de homem no meu corpo. Desde então, decidi ser Sílvia", lembra a professora sobre o episódio que ela considera como "mais marcante".

Com o recomeço, novos embates precisaram ser travados. Dessa vez não somente para reafirmar sua identidade cotidianamente, mas para fazer valer o seu lugar de fala dentro e fora de casa. Aos familiares, explicou seu novo momento até ser tratada com respeito. Na Universidade Federal do Ceará (UFC), onde cursava Letras, lutou pelo direito de usar o nome social. E conseguiu. As conquistas, porém, não pararam por aí.

O espaço acadêmico serviu para fortalecer suas lutas pessoais, que logo se tornaram uma demanda coletiva. "Fui diretora do Diretório Central dos Estudantes (DCE). Sentei com o reitor e pró-reitor de graduação e construímos juntos a compreensão da universidade ao nome social. Depois disso, ganhou força um outro pleito, que foi pelo nome social na carteirinha de estudante. Fiz um ofício ao prefeito e ele deferiu a solicitação", cita Sílvia Cavalleire, que comemora o uso do nome social no documento desde 2015.

Apesar dos avanços, a professora sugere que a causa LGBTI+ ainda é atravessada por gargalos históricos revestidos de preconceito. Faltam oportunidades de emprego e estudo, diz. Contudo, é preciso insistir para que os contratempos fiquem então no passado e se tornem referência. "Dentro das minhas possibilidades, superei barreiras dentro de uma instituição de ensino superior e de um dos municípios mais importantes do Brasil, para que a minha comunidade pudesse ser vista e reconhecida".

Memória

E em cada luta vencida, independentemente da circunstância e da temporalidade, há memória. Para o homem trans Rodrigues Cláudio Lima, de 34 anos, as lembranças fincadas na infância perpetuam até hoje. Ainda criança, já se identificava mais com os brinquedos tidos pelo mercado como masculinos. Preferia distrair-se com os itens do irmão do que com as bonecas da irmã. O apreço também se estendia para o vestuário.

"Um dia, no shopping, eu tinha uns 7 anos, lembro que me vesti todo com a roupa do meu irmão. Foi um momento em que eu pude ser quem eu já era", considera. Da infância à pré-adolescência, os gostos ficaram mais aflorados. "Quando a minha mãe começou a levar eu e meus irmãos pra comprar roupa, lembro de querer uma totalmente masculina, um sapato, e não aquilo que ela comprava. Nessas referências que eu já me via quem eu era", resgata o técnico em atendimento.

Anos mais tarde, as mudanças no guarda-roupa o tornaram mais seguro, certo de quem ele era. "Como adulto, quando consegui quebrar a barreira de cortar o cabelo e ir mudando todo um comportamento, o estilo de roupa e até peças íntimas", menciona.

A maioridade o permitiu ainda descobrir que "não estava numa viagem solitária". Histórias de homens trans serviam como espelho que refletia o lugar onde ele queria estar. João Nery, o primeiro transexual do Brasil a fazer a cirurgia de redesignação sexual, além de conterrâneos do Ceará o inspiraram a continuar.

"Essa segurança veio maior quando comecei a ter contato com pessoas que eram como eu. A própria biografia do João Nery, a convivência com o Sílvio Lúcio e o Kaio Lemos (de Pacatuba e Fortaleza, respectivamente), que são protagonistas de tantas buscas e resultados positivos", justifica Rodrigues.

Usuários

No entanto, segundo levantamento do Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, pessoas trans (travestis, homens transexuais, mulheres transexuais e pessoas não-binárias) representam ainda um perfil identitário em maior risco e vulnerabilidade social. O público foi o principal demandante do serviço de acolhimento, perfazendo 75% dos/das usuários/as em 2018, 20% a mais em relação a 2017.

Os dados chegam e pensamos: "onde não estamos conseguindo? A nossa responsabilidade é fazer com que eles não tenham um processo tão solitário e cheio de feridas. Que possam ser livres e vivenciar sua identidade de gênero para cada vez ir mais longe", almeja Rodrigues Cláudio Lima, ponderando ainda que na contramão do "retrocesso do país", a população transexual do Ceará "está remando contra a maré para o fortalecimento das políticas públicas, afirmativas, a identidade e o diálogo", complementa.

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