Todos os abrigos para a infância em Fortaleza estão irregulares

Superlotação, divisão inadequada dos acolhidos e insuficiência de profissionais são os principais descumprimentos flagrados pela Defensoria Pública nos 19 equipamentos. Poder público pode ser penalizado

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@diariodonordeste.com.br
Legenda: Maiores prejuízos de uma assistência insuficiente são mensuráveis a longo prazo
Foto: Foto: Helene Santos

Adoecedor. Assim é descrito o cenário que mais de 400 crianças e adolescentes vivem em acolhimentos institucionais de Fortaleza, amargando os efeitos da superlotação e da insuficiência de profissionais de assistência médica e social. Todos os 19 abrigos localizados na Capital estão irregulares quanto a pelo menos uma das normas técnicas do Governo Federal e dos Conselhos Nacionais dos Direitos da Criança e do Adolescente e de Assistência Social. Os dados são de pesquisa da Defensoria Pública Geral do Estado.

Os problemas, aliás, começam nos números. Por lei, cada acolhimento deve abrigar, no máximo, 20 pessoas: três dos quatro equipamentos geridos pelo Município ultrapassam o limite. De acordo com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS), apenas o "acolhimento I" segue a norma, com 19 adolescentes de 12 a 18 anos abrigados. Já as unidades II, III e IV excedem a capacidade, com 21, 31 e 26 crianças de 0 a 12 anos, respectivamente. No total, são 97 pessoas sob a responsabilidade da Prefeitura de Fortaleza.

A quantidade de profissionais para atendê-las, porém, segue aquém do desejado: são quatro psicólogos, gerando uma proporção de 24 acolhidos para cada um; dois terapeutas ocupacionais, cada um devendo acompanhar 48 pessoas; seis assistentes sociais, com cerca de 16 abrigados para cada; três pedagogas, com razão de 32 meninos e meninas para uma; e 63 cuidadores, divididos entre os quatro acolhimentos. As projeções se baseiam nos dígitos só para se ter a dimensão do problema.

Excesso

As orientações técnicas para os serviços de acolhimento determinam que a cada dez usuários deve existir um educador ou auxiliar, e a quantidade tem que ser aumentada se houver demandas específicas, como pessoas com deficiência ou menores de um ano.

"Nenhuma das unidades da Capital se adequa às normas técnicas, seja por irregularidade na divisão das crianças e adolescentes nas instalações, pelo número em excesso de acolhidos além das vagas ou pela ausência de profissionais de apoio. É urgente que haja uma reformulação geral", alerta o supervisor do Núcleo de Defesa dos Direitos (Nadij) e das Defensorias Públicas da Infância e Juventude do Ceará, Adriano Leitinho.

A responsabilidade pela política de acolhimento, ressalta o defensor, é de obrigação do Município. Mas, diante da "incapacidade de gerência", o Estado precisa complementar. Atualmente, cinco abrigos têm gestão estadual direta (três deles na Capital) e outros seis são geridos de forma descentralizada, com apoio de ONGs. De acordo com a Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS), "todos contam com a equipe de assistência básica e nenhum excede a capacidade".

Não é o caso do Abrigo Tia Júlia, na Parangaba, por exemplo: lá, um psicólogo é responsável por atender os 60 acolhidos, onde há, pelo menos, 27 pessoas com deficiência e 20 bebês menores de 12 meses, segundo fonte ligada à Assistência Social do Estado. Questionada, a SPS disse que o abrigo "está revisando o plano de trabalho da entidade que administra o abrigo", o que inclui "ampliação das equipes". Com a atualização, o Tia Júlia passará a contar com três psicólogos, três assistentes sociais e três pedagogos, "uma equipe para cada 20 acolhidos". O prazo é até o fim de setembro.

Sobrecarga

A primeira palavra deste texto, "adoecedor", foi a forma como Júlio César (nome fictício) definiu o cenário que vivencia. Ele atua na assistência aos acolhidos em uma das unidades de Fortaleza. "A falta de pessoal gera uma complicação muito grande para cuidar das crianças. Temos parcerias com universidades, mas não é suficiente. Em alguns abrigos, agora que chegou psicólogo. Às vezes, se demite cuidador e não vem outro. Fazem maquiagem quando o Ministério Público bate", desabafa.

Segundo Júlio, os prejuízos a quem já vive institucionalizado são imensuráveis, posição ratificada pelo defensor Adriano Leitinho. "A falta de profissionais prejudica os direitos previstos na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente, como saúde, educação e lazer. Sem falar na grande rotatividade de psiquiatras e psicólogos, gerando uma quebra no acompanhamento", pontua o supervisor.

A rede responsável pela fiscalização dos acolhimentos envolve entes como Conselhos Tutelares, Defensoria e Ministério Público do Ceará. O promotor de Justiça Luciano Tonet aponta que, nas vistorias, são verificados estrutura, pessoal, documentações e a situação das crianças quanto à saúde e educação regular. "Há mais de um mês, fizemos reunião com todos os acolhimentos, pontuando o que deveriam regularizar. Alguns estavam com alvarás vencidos, outros com excedente de acolhidos. Solicitamos ao Município o aumento do número de vagas. Em descumprimento, podemos até entrar com ação judicial, pedido de liminar ou tutela emergencial".

Conforme Leitinho, reuniões com Município e Estado tentam resolver as irregularidades administrativamente. Caso não seja possível dentro do prazo, estuda-se judicializar a questão para o cumprimento das normas. "O Município é passível de multa, e os gestores, de responsabilidade pessoal, caso adolescentes e crianças estejam sendo vítimas de danos".

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