Toda mulher é uma rainha

A face negrume, tintada, inventava uma segunda pele. Bem lembrado dizer que nossa cor é só verniz, mas se julgam é preciso reafirmar.

Escrito por Melquíades Júnior , melquiades.junior@diariodonordeste.com.br
Foto: FOTO: FERNANDA SIEBRA/SECULTFOR

Só você não veio. O Maracatu já entrou sábado na Domingos Olímpio. Hileia levou o Caio, de cinco meses. Foi de seu curumim. Chegou esperto, mas no cortejo dormia. Deve ter sonhado na avenida. Estava na ala dos índios. Precisava ver: uma avenida de pretos e índios. Não que fossem todos pretos e índios, mas eram. A face negrume, tintada, inventava uma segunda pele. Bem lembrado dizer que nossa cor é só verniz, mas se julgam é preciso reafirmar. Pretos e não-pretos escurecendo o rosto e falando de Yemanjá, Anastácia, Dandara, pedindo as bênçãos de Oxalá. Passou da cor, "penetrou na alma", disseram.

Mulheres saíam balançando defumador, deixando fumaça cheirosa na avenida. "É pra abrir caminho, menino", ouvi do meu lado. O menino era outro, mas a dúvida era a mesma. Tudo era brilho, e Fernanda saiu fotografando a pupila dos outros. Encontrou Mercedes, cantando como quem reza. Vestia-se de dama-destaque na abertura da corte - o Maracatu devolve a realeza a negros e mulheres. Findo o cortejo, não teve a mesma pressa de muitos para se trocar - é preciso desocupar para a agremiação que vem depois.

O poder da fantasia

Fui para o fim da linha. Gosto de ver o alívio de quem enfrentou a via, e travestiu-se de comum. Mercedes demorou mais um tempo com o vestido acetinado em ouros, cordões perolados, uma coroa brilhosa em diamantes, como as plumas que lhe adornavam as costas. E o cálice na mão. "Poderosa, você", um bradou.

Foto: FOTO: FERNANDA SIEBRA/SECULTFOR

Começou a segunda chuva, quase meia-noite, e Mercedes chorava. Descia uma lágrima tão contundente, não se confundia com a chuva que caía. Fez rio no negrume. "Por tudo o que passei na vida, estar aqui é um agradecimento". Lembrou do pai, Francisco, que "agora é anjo" iluminando seu Maracatu. "Obrigado pela permissão de estar aqui e falar, meu pai". Saí antes que me aguasse também. Mal sabe ela que o meu "viajou" num Carnaval, talvez para ser lembrado com festa.

- Corre, senão a gente vai perder!

Três mulheres da realeza do congado passam por mim. A outra pressa depois da avenida é não perder o ônibus que leva para casa.

- Vão pra onde, me meti.

- Jardim América, gritou uma, passando papel no rosto negrume para revestir-se de si mesma. Foram-se embora para o bairro com a cara de orgulho do tamanho da Domingos Olímpio. "O povo de Iracema/ Não promete pra faltar...".

As loas do Maracatu, trilhadas com batuques e afoxés, vão chicletando na mente até que, quando dou fé, estou cantando junto: "No peito bate um coração verdadeiro/As correntes vou vencer/ Heroína Dandara..."

- Olhaí, tão falando daquele rapaz, a travesti que mataram.

- É não, mulher, é outra Dandara.

Pense em uma, leve duas. Ambas lutaram e morreram por serem o que eram, igual Anastácia e Tereza de Benguela, também homenageadas. As mulheres foram a grande celebração nestes Maracatus, tal qual Maria da Penha, a da Lei, mas só de ser Maria já lembra muitas outras de agonias. Mariele esteve presente. E o "quem matou?", também.

Foto: FOTO: FERNANDA SIEBRA/SECULTFOR

- Falar disso em pleno Carnaval?

- E homem espera passar o Carnaval pra bater em mulher?

Eu com um ouvido na arquibancada e outro no desfile. E o batuque continuando parece diminuir o constrangimento de quem se calou. "A mãe protetora acolhe seu fruto/ da fúria dos homens que calam a voz".

Os carros alegóricos, fartos em brilho, contavam pedaços da história, trazendo orixás, representando forças da natureza e a conexão com a divindade. "São filhas de santo/ são filhas da paz".

Traz a umbanda, candomblé e todo o sincretismo que há. Para uma cidade que proibia negros com batuques de autoafirmação, Maracatu era subversão. Hoje, grita contra todo revés de intolerância.

Um dia (não é impossível) se colherá o respeito. A semente se vê na alegria das crianças brincantes no Maracatu. "Saravando os quatro cantos...".

 

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