Sempre que chove

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@diariodonordeste.com.br
Legenda: O último Censo Municipal sobre a população em situação de rua foi feito em 2015. As políticas de assistência ainda engatinham
Foto: FOTO: JL ROSA

Sempre que chove eu lembro dela. Do olhar intenso, mas vazio - assim como o estômago o dia inteiro, porque expulsava do corpo a comida que chegava lá, saída do lixo. Vazio como o espaço entre os dentes da frente, ausência deixada como lembrança do soco do ex-marido. Sulamita, o nome. Sulamita Alves. Vivia na rua desde os oito, quando veio sozinha do Interior para Capital. A idade eu não lembro agora, mas já tinha vários filhos, na época em que conversamos. A quantidade também não lembro, eram muitos. Mas o olhar dela... Sempre que chove.

Se cair gota lá fora e for noite, não tem jeito. Entre preces de gratidão pelo meu lençol, pelo teto e pelo café quente, lembro dela. E também da Marta Dias. Esta com menos peso, é verdade. Afinal, ela estava prestes a ganhar uma casinha do Minha Casa, Minha Vida quando a entrevistei, junto da Sulamita, às 21h, no chão da Praça do Ferreira, em março de 2017. Não sei se deu certo, mas prefiro acreditar que sim. Já há fotografias escuras demais arquivadas por aqui.

Porque, sempre que chove, me vem ainda a Carleane à cabeça. Ela eu encontrei dormindo embaixo da marquise de um Banco, perto da Praça dos Leões (não tem gente em situação de rua só na Praça do Ferreira, Prefeitura, pasme!). Magra, dentes raros e podres, cabelo desgrenhado e uma vergonha danada de estender a mão pra encontrar a minha, quando a cumprimentei. A fala foi firme até embargar toda ao falar dos filhos que não via há meses, desde que se recusou a largar o marido viciado e se rendeu às drogas junto com ele, pra matar a fome. Voltei lá umas três vezes, pra dar a ela algo além do abraço. Que alimentasse, agora, o corpo. Nunca mais a encontrei.

Reencontrei, por outro lado, algo da fisionomia dela - talvez os olhos, o formato da face ou o da tristeza -, muitos meses depois, no rosto da Maria Isabela, nome social atrás do qual se escondia uma menina feita mulher pelos estupros constantes do pai. Fugiu pros braços da rua, muito mais acolhedores, apesar da solidão. Literalmente sem lenço nem documento, como na canção - mas sem as cores e os amores da voz do Caetano.

Uma vez, a Fernandinha Siebra, fotógrafa, me perguntou como eu lembrava dos nomes de todas elas assim, de cabeça, puxando a ficha na memória em qualquer conversa. Nem lembro o que eu respondi, mas menti. Porque a verdade é que a indignação com as não-respostas padronizadas e vazias do poder público à população em situação de rua, a pluralidade de motivos que as levam à incerteza da falta de teto, ao frio, à fome... As crianças que crescem sem saber o que é ser... Criança, escola, brinquedo, roupa limpa, banana amassada com leite às 16h.

A culpa por ir lá, conversar com Sulamitas, Martas, Carleanes, Isabelas, escrever, publicar e arquivar na minha memória, arquivo tão vivo e tão morto. E tão só isso. A impotência. A chuva. Não sei de onde veio, mas me inquieta, isso tudo. Essa coisa de gente que não tem de onde sair nem pra onde ir. A sujeira do chão mijado, a poeira do Centro, o calor do dia, o vento gelado da noite. A falta de comida, a violência em tantas e todas as formas, da sexual à institucional. A verdade é que nada disso me deixa esquecer, e eu menti no título e nesse texto inteiro.

Porque agora mesmo o céu tá limpo, o asfalto tá seco, o ventilador tá no três. Eu não lembro só quando chove.

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