Rezadeiras promovem a cura pela fé nos postos de saúde

Escrito por Redação ,
O desafio é garantir a complementaridade entre os saberes ´formais´ do médico e o tradicional da reza

Já imaginou ir a uma unidade hospitalar básica e, além da receita médica, receber também a indicação de procurar uma rezadeira? Se isso pode parecer estranho para alguns, já é, no entanto, rotina no Centro de Saúde da Família (CSF) Rebouças Macambira, no Jardim Guanabara, em Fortaleza. No local, um grupo de quatro ´curandeiras´ se revezam, todas as terças e quintas-feiras, para tentar levar a cura através da imposição das mãos, do poder da fé e das raízes. É o desafio diário de unir o saber médico ´oficial´ com a tradição da reza.


Com a presença das terapeutas espirituais tradicionais auxiliando no tratamento, os pacientes passaram a visitar as unidades médicas para se consultar com o clínico e depois receber uma reza, unir, assim, os dois saberes existentes fotos: Lucas de Menezes

Ainda presentes, mas, muitas vezes restritas ainda às periferias da Capital, as rezadeiras sobrevivem prometendo o fim de enfermidades como o ´mal olhado´, a febre repentina, a desinteria que não cessa, a temida ´espinhela caída´, doenças de pele, mazelas do corpo e até da alma.

Com o olhar bem sereno e as mãos próximas ao coração, a rezadeira Raimunda Gomes da Silva, 67, recebe sua primeira paciente do dia no Posto de Saúde do Jardim Guanabara: a pequena Lívia Rodrigues, 5. A menina tem tido constantes quedas de cabelo. O motivo disso? Nenhum médico descobriu, relata a mãe, a doméstica Lidiane Costa, 29. Elas vão na fé de que a ´curandeira´ possa ajudar a menina. A ideia é unir pomadas e cremes ao poder que emana das palavras e gestos da rezadeira.

A senhora Raimunda Gomes impõe as mãos, fecha os olhos e diz oferecer suas melhores energias. Não usa galhos e ramalhetes, apenas dizeres. "Eu faço isso há mais de 40 anos e vejo as pessoas saírem melhor, bem mais calmas. De mim só emana amor. Unindo a espiritualidade com os medicamentos sei que os doentes podem ficar bons", diz.

A fila para o atendimento espiritual é grande. Alice Maria Mesquita, 42, doméstica, leva o garoto, de apenas quatro anos, para rezar. O menino apresenta quadro de desinteria há dias. Tudo muito repentino e aparentemente sem motivos. Prato cheio para a reza. Será o tal do ´ventre caído´, um susto que ele tomou?

A rezadeira Rosa Ferreira da Silva, 86, oferece apoio, mas reforça: só a oração não vai adiantar, o bom-senso pede reforço na hidratação. "Somos orientadas a entregar também os pacotes de soro para melhorar a saúde. Mas ainda tem muita gente que só acredita na rezadeira e não quer levar o doente ao posto", afirma.

Trabalhando há mais de 50 anos com as mãos, Rosa teme o fim das rezadeiras, diz que uma outra geração não está sendo formada e que o saber tradicional estaria com legado comprometido. "Nós estamos ficando velhas e não estou vendo gente nova se interessar. O que mantem a tradição viva é a crença, é o fato das pessoas, mesmo com os médicos, ainda estarem com a gente. Mas ainda há perseguição e preconceito contra nós", relata.

Cultura

Para a coordenadora do Posto de Saúde Rebouças Macambira, Maria da Conceição de Angelo, a ideia de levar essas mulheres que trabalham com rezas para dentro da unidade foi algo bem natural. Segundo a gestora da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), a presença delas é muito forte no bairro. Vez ou outra, as agentes de saúde narravam que um doente estava deixando de se consultar com um médico, apesar da gravidade da enfermidade, apostando apenas na fé.

"Estamos dialogando com a cultura e a tradição da comunidade. Sentimos que isto está melhorando, inclusive, a humanização e o relacionamento entre as partes. Esse intercâmbio de saberes está gerando bons efeitos", narra a coordenadora Conceição.

Conflitos

A contadora Débora da Rocha Marques, 26, moradora do bairro Ellery, conta que foi criada indo, quando criança, às rezadeiras. Hoje, em virtude da falta de tempo, deixou de frequentar os espaços, mas ainda vê isso muito forte na sua família, apesar da ´ditadura´ do tal saber médico.

"Acho o trabalho delas muito importante e deve sim ser mantido para as próximas gerações. O que me motivava a ir era a crendice que por sua vez dominava os mais idosos e passavam de geração em geração. E era a única solução que se usava, pois médico antigamente era muito caro e de difícil acesso. Mas, a opinião clínica hoje é bem mais aceita, apesar de eles nem sempre acertarem o diagnostico e não darem a devida atenção", finaliza.

PROTAGONISTA
"Antigamente a reza era a nossa única opção"

A dona-de-casa Valdenir Cardoso, 60, conta, com emoção, como criou os seus filhos. Todos, segundo ela, à base de lambedores caseiros, chás de boldo, emulsões de alfavaca, banhos de aroeira e eucalipto. Imaginem, então, os cheiros que exalavam na casa de Valdenir, erva pura!

Ela narra que a sua mãe, de 87, raramente procura um médico, diz não confiar muito no tal "doutô". Os remédios fariam mais mal do que bem ao corpo, de tão cheio de efeitos colaterais. Dona Valdenir lembra com saudade as batidas na porta da rezadeira em plena madrugada, agoniada pedindo ajuda. "Antigamente a reza era a nossa única opção".

OPINIÃO DO ESPECIALISTA
Medicina ´Oficial´ e Popular se complementam

Cristiane Pimentel
Jornalista e pesquisadora

Consideradas como um misto de farmacêutica e médica pelas comunidades nas quais atuam - com a particularidade de não cobrarem por seus serviços - as rezadeiras atuam na proteção e cura de males de origem física ou espiritual. Numerosas em comunidades rurais e de baixa renda, possuem, no entanto, um público que extrapola essa esfera. É importante perceber que um doente que procura uma rezadeira não o faz, primeiramente, por fatores sociais e econômicos, mas por aquela prática possuir respaldo cultural para tanto. De fato, todo aquele que opta pela cura na Medicina Popular o faz de acordo com as concepções de enfermidade e saúde inseridas em sua cultura. Por exemplo, se um determinado indivíduo crê que o chamado "cobreiro" (herpes zoster) é uma enfermidade não passível de ser curada pelo médico, mas sim pela rezadeira; ou se outro acredita que a apatia de seu filho não é outra coisa senão "quebranto", então ambos irão procurar a rezadeira. Não há fatores de dúvida, pois, para aquele paciente, a Medicina Popular é a única apta a curar os chamados "males de reza", e a Medicina "Oficial", os "males de dotô". Obviamente que a dificuldade de acesso a recursos e informações de saúde tem seu peso quando se pensa em um suposto distanciamento da chamada Medicina "Oficial" por parte desse paciente. Porém, sem dúvida, é equivocado definir que o ofício de rezadeira persista até os dias de hoje, mesmo em ambientes urbanos, por conta da ineficiência do sistema de saúde. É a cultura que age como fator decisivo na opção entre ir ao médico ou a rezadeira. A cultura impele a crer que aquela é a única opção, o único caminho pelo qual ele obterá a cura. Por isso mesmo que não é difícil encontrar entre os clientes das rezadeiras pessoas de elevado grau de informação ou poder aquisitivo. É com essa acertada percepção de que não há conflito, mas complementaridade, entre Medicina Popular e "Oficial", que municípios vêm aliando suas equipes de saúde a rezadeiras, em programas de saúde preventiva, como ocorreu no município de Rebouças, no interior do Paraná. Lá foi sancionada, em fevereiro deste ano, uma lei inédita no País, que confere às rezadeiras o status de profissionais de saúde.

Desafio é romper com a centralidade no médico

Em meio a toda essa discussão sobre quem tem o poder de curar - médicos, rezadeiras (ou ambos), as práticas ditas complementares e alternativas tentam se misturar, em um verdadeiro caldeirão de saberes, com as técnicas formais, medicamentosas, ditas ´oficiais´. E como encontrar, em um mesmo espaço, clínicos gerais indicando remédios alopáticos e outros profissionais tentando curar através de massagens, rezas, lambedores, ervas, conversas, pelo toque ou afeto.


Uma das rezadeiras mais conhecidas de Fortaleza, a Mãe Mocinha, uniu os seus conhecimentos da reza junto às técnicas de massoterapia

Apesar de o Ministério da Saúde já preconizar e até estimular o uso dessas diversas práticas terapêuticas complementares dentro das unidades médicas, o desafio ainda é conciliar, tentar mediar os conflitos de quem concorda e discorda dos mil interesses.

"O que queremos hoje é romper com essa centralidade do cuidado apenas no médico. Acabar com a ´desmedicalização´. Fazer com que todos compreendam que a cura vem de um trabalho conjunto, multidisciplinar que conta, inclusive, com a presença do clínico e da rezadeira", explica a médica, educadora popular e atual coordenadora pedagógica do Sistema Municipal de Saúde e Escola, Vera Dantas.

Na rede pública de Fortaleza, Vera Dantas enumera diversas ações já existentes na área. Ainda são poucas, segundo ela, mas bem expressivas. Existem hoje, na Capital, conforme Vera, duas Ocas Comunitárias geridas pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS), o programa ´Cirandas da Vida´, trabalhos conjuntos com o Projeto Quatro Varas, terapeutas em postos de saúde e nos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSAD).

Capacitação

"Além de reconhecer a importância das rezadeiras, por exemplo, temos a consciência também de que elas devem renovar seus saberes. Daí, oferecermos cursos de capacitação em outras áreas como massoterapia e técnicas de reiki. Tudo sem imposição, com respeito à todos as culturas e à diversidade religiosa. Estamos fazendo um trabalho pequeno ainda, de formiga, mas torcendo sim e lutando muito por uma universalização da saúde de qualidade e mais humanizada", afirma a médica Vera Dantas.

E não faltam exemplos de rezadeiras que, junto com o trabalho tradicional da fé, têm aprendido novas práticas. A mãe de santo e rezadeira, Maria Perpetua Meneses, 68, conhecida como ´Mãe Mocinha´, é famosa na cidade com a cura pelas mãos. Moradora do Pirambu, já rezou em muita gente. Hoje, trabalha também como massoterapeuta no CAPSAD da Secretaria Executiva Regional (SER) IV.

Para a Mãe Mocinha, o momento agora é de fortalecer essas técnicas tradicionais e garantir que elas, cada vez mais, estejam dentro dos espaços formais.

"A gente trabalha com muito amor. Esse é o nosso diferencial com relação aos demais. O que me motiva a rezar nas pessoas é a caridade, a vontade de ajudar. Penso com otimismo, acredito que as rezadeiras nunca vão se acabar. Sempre vai existir gente fazendo o bem", relata Mocinha.

IVNA GIRÃO
REPÓRTER
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