Revisita à casa de memórias (e afetos)

Escrito por Lígia Costa , ligia.barbosa@diariodonordeste.com.br

Do longo e enfadonho carão ao simples e marcante ensinamento. Uma das maiores dádivas da vida é ter avô e avó por perto. Ainda mais quando o apego se traduz em afeto mútuo, no fazer e desfazer de todo dia. Bem mocinha, como dizia minha avó, tive a chance de voltar a percorrer toda a extensão daquela espécie de 'casa-trem' dos pais de meu pai.

Percebi, no entanto, que meus olhos registravam algo já conhecido, mas estranho. Algo que minha memória de criança, ainda um tanto recente, não entendia e custava a acreditar. Meu saudosismo, herdado de seu Manel, negava que aquele lar de inúmeras lembranças se limitasse a dimensões tão menores e sem graça.

Embora ainda se mantivesse comprida e estreita, preferi abandonar o mais rápido aquela residência para evitar estragar o sabor das melhores recordações. Cheia de pressa, consegui percorrê-la em toda a sua extensão. A casa onde tanto sorri, me escondi e emendei carreiras, até o corpo não aguentar mais, estava alugada, ocupada por outras pessoas, guardando outros móveis e novas histórias.

O local onde até alguns anos atrás havia sido o território mais explorado por mim quando mal alcançava a mesa, em aniversários ou nas brincadeiras e rotina risonha, mudou. E, assim, do nada, de repente. E em significado e feição.

A sala onde eu e meus irmãos dividíamos um valioso ovo de chocolate durante a Páscoa não era tão diminuta e sombria como agora a enxergava.

A cozinha de onde saíam bolos, cocadas, doces de gergelim e goiabadas - que perfumavam as tardes quentes de sábado - não poderia ser aquela lá tão sem graça, um vão breve, coberto por cerâmicas pálidas e trincadas.

O jardim de inverno, cheio de verde pra todo lado, não era mais tão iluminado e limpo quanto a minha memória de menina desenhava. No passado, era o lugar preferido de dona Laura para fazer seus crochês. A coisa mais clara e bonita, tal qual os centros de mesa formados pela linha alva que corria entre os seus dedos.

O quarto do casal protagonista da família, onde um dia dormi discretamente enquanto tentavam desesperadamente descobrir meu paradeiro, não era assim tão banal como agora o via. Até a cama, onde me aconcheguei fardada ao chegar da escola, era bem maior que aquela outra ali perdida no meio do nada, tão pouco convidativa.

O quintal que abrigava as brincadeiras mais ousadas dos irmãos arteiros não seria aquele terreno de areia abandonado, sujo, sucateado e assustador.

Pelo menos, encontrei algo que melhor harmonizava com minhas lembranças. Nosso brinquedo mais perigoso ainda estava lá: o enorme galho do coqueiro, que fazia as vezes de corda para nos levar e trazer dependurados pelo ar quando os adultos saíam de perto. Assim como a escada para a grande aventura: uma goiabeira, perfeitamente esculpida para os pés danados da criançada, que se equilibrava no telhado do antigo armazém.

Saí de lá. E redimensionei tudo em mim. Ainda que o tempo e a maturidade me oferecessem um novo olhar - mais preciso, de cima pra baixo e também enviesado - sobre as coisas, a rotina construída pelo afeto manteve a boa e velha recordação intacta, com tudo no seu devido lugar. As proporções viraram outras, mas, no fundo, nada mudou.

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