Redução de verbas restringe pesquisas científicas do Ceará

Levantamento feito pelo Diário mostra que o CE perdeu 347 bolsas de mestrado e doutorado entre 2015 e 2017

Escrito por Thatiany Nascimento - Repórter ,
Legenda: O doutorando em Geografia na UFC, Pedro Monteiro, teve a pesquisa de mestrado premiada nacionalmente em 2017e lamenta a falta de bolsas
Foto: Foto: arquivo pessoal

Descobrir evidências. Investigar. Testar hipóteses. Analisar resultados. Divulgá-los. Um rol de procedimentos complexos que exigem investimentos de todas as ordens. Do tempo e esforço de pesquisadores a garantia efetiva de recursos financeiros que, no caso do Brasil, provém, sobretudo, dos cofres públicos. Trabalhos desenvolvidos em prol de avanços científicos, de incremento tecnológico e de melhorias sociais, dentre tantos outros ganhos, oriundos da produção de conhecimento. Porém, quem é pesquisador, sabe: a tarefa que sempre foi árdua, nos últimos anos, devido à falta de verbas, tem sido ainda mais exaustiva. No Ceará, a redução dos recursos afeta diretamente à continuação e ampliação de estudos científicos nas universidades.

> Investimento não atinge 2% da receita 

O cenário de corte de verbas, alertados publicamente pelas agências nacionais de financiamento de pesquisas desenvolvidas nas instituições de ensino superior e nas de tecnologia e inovação repercute no Estado. Pesquisadores de universidades e institutos partilham do temor e do alerta quanto à continuação das análises científicas em curso. As queixas são comuns nas mais diversas áreas, seja saúde, exatas, biológicas, humanas, dentre outras. Na prática, pesquisas estão sendo reduzidas ou sequer chegam a ser iniciadas devido à falta de financiamento.

Concessão de bolsas

Levantamento feito pelo Diário do Nordeste, baseado em dados solicitados às duas principais agências de fomento à pesquisa no Brasil; o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) ligada ao Ministério da Educação; e à uma instituição estadual; Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), demonstram redução na quantidade de bolsas para estudantes de mestrado e doutorado no Ceará, entre os anos de 2015 e 2017.

Os dados revelam que, neste intervalo de tempo, o Ceará perdeu no total 347 bolsas de mestrado e doutorado cursados em instituições públicas e privadas localizadas no Estado.

Dividida por instituição, a perda foi de 183 bolsas da Capes, que em 2015 ofertava 2.382 bolsas e em 2017 passou a disponibilizar 2.199; seguida pela Funcap, que ofertava 1.069 e passou a oferecer 913; e o CNPq que apresentou a menor redução, nesse intervalo e nessa categoria específica, recuando de 649 bolsas em 2015, para 641 no ano passado. Atualmente, as bolsas de mestrado têm um valor estipulado em R$ 1.500, com duração de até 24 meses. As de doutorado são de R$ 2.200, com duração de até 48 meses.

O Diário do Nordeste solicitou dados referentes à oferta de bolsas nesta categoria específica em 2018; no entanto, as três instituições informaram que as informações ainda estão sendo tabuladas, o que, segundo elas, torna inviável a disponibilização das mesmas de modo consolidado. O encolhimento dos recursos disponíveis, demonstrado a partir das bolsas de pós-graduação de mestrado e doutorado evidencia o cenário problemático alertado por representante dos CNPq e da Capes recentemente.

Medidas

Em agosto, o Conselho Superior da Capes encaminhou carta ao Ministro da Educação, Rossieli Soares, falando sobre as preocupações referentes à limitação do orçamento para 2019. Uma das consequências alertadas pelo Conselho, caso a medida venha ocorrer, é a suspensão do pagamento de todos os bolsistas de mestrado, doutorado e pós-doutorado a partir de agosto de 2019, o que, conforme o Conselho, afetaria mais de 93 mil discentes e pesquisadores no Brasil.

Este mês, ao sancionar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2019, Michel Temer não vetou um trecho do artigo 22 da LDO, cujo o teor diz que o orçamento do Ministério da Educação será reajustado com base na inflação. Isto garante que os recursos da educação não podem ser inferiores aos desse ano, sendo corrigidos conforme a inflação do período.

Efeitos

A medida, embora vista como um alívio, para pesquisadores ouvidos pelo Diário do Nordeste não se traduz em segurança. Em diversas áreas (vide box), a falta de verba, na prática, tem se constituído em não realização de estudos relevantes ou adaptação dos mesmos às limitações orçamentárias, o que, muitas vezes, significa redução do alcance.

A secretária Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC-CE), professora da UFC e pesquisadora do CNPq, Cláudia Sales, avalia que o cenário projetado para o próximo ano já vem sendo construído nos últimos três anos. "Comparado a 2014, a redução de investimentos nas universidades federais é 80% e a redução do custeio delas é de 20%. Por outro lado, apenas de 2016 para 2017, o orçamento do Ministério de Ciência de Tecnologia foi reduzido em mais de 40%", ressalta.

Em relação aos efeitos sobre as áreas distintas de pesquisas, Cláudia afirma que "certamente, as pesquisas experimentais demandam mais recursos do que a pesquisa teórica, e logo os cortes parecem ter mais impacto sobre a pesquisa experimental, mas justamente por ser mais 'barata', a pesquisa teórica é agressivamente competitiva". Para a pesquisadora, qualquer interrupção de bolsas, de programas de colaboração nacional e internacional, consideradas vitais para a pesquisa teórica, tendem a "prender o Brasil por anos".

Experimentos nas ciências agrárias perdem incentivos

Manter o número de bolsas para mestrandos e doutorandos tem sido um desafio, conta a veterinária e vice-coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Veterinárias da UECE, Sandra Salmito. "Desde 2015, o número de editais para ajudar no custeio não cresce. Se não tem dinheiro para a pesquisa e nem tem edital, como vai pesquisar?", questiona.

Hoje, segundo ela, pelo menos, três pesquisas de grande impacto na área estão sendo reduzidas pelo corte das verbas, são elas: a produção de fármacos através de cabras transgênicas; o projeto "ovário artificial" que é experimento em caprino e ovinos que pode ser uma alternativa de conservação dos folículos ovarianos de mulheres vítimas de câncer; e a produção de remédio a partir de plantas medicinais.

Análises sobre violência ficam comprometidas

O Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da UFC, que há mais de 20 anos analisa temas como criminalidade, direitos humanos e conflitos sociais, passa por um momento de enfraquecimento das pesquisas coletivas, segundo o sociólogo César Barreira, coordenador do grupo. O professor relata piora do cenário nos últimos quatro anos. "Continuamos com as pesquisas individuais. Mas não podemos contratar bolsistas. Nem aplicadores de questionários e entrevistas", revela.

Ele diz ainda que a falta de dinheiro resultou na recente interrupção de um estudo aprofundado sobre homicídios no Ceará. Pesquisas semelhantes também são demandadas ao LEV por estados como Rio Grande do Norte, Piauí e Maranhão, mas não há viabilidade de executá-las nesse momento.

Sem bolsa, estudo premiado na geografia sofre restrições

O desenvolvimento de uma metodologia inovadora de mapeamento de cavernas, para a compreensão de como as mesmas surgem e evoluem fez o pesquisador Pedro Edson Monteiro da UFC receber, em 2017, o prêmio de Melhor Dissertação de Mestrado em Geomorfologia, concedido pela União da Geomorfologia Brasileira. Hoje, doutorando na UFC, ele conta que é difícil manter-se sem bolsa. Das 18 vagas de doutorado no programa da Geografia, apenas 5 têm bolsa.

O estudo requer verbas para análise laboratorial, compra de materiais e viagens, pois a área pesquisada é no Rio Grande do Norte. A ideia é ampliar o estudo para o Ceará e a Paraíba. Mas, a falta de bolsa pode impedir. "A gente pensa se fez a opção errada ao ser pesquisador", lamenta.

"Cortes de recursos são uma falsa economia"

Entrevista com Renato Janine
Filósofo, professor da USP e ex-ministro da Educação

Qual sua avaliação sobre o modelo de financiamento das pesquisas no Brasil?

No Brasil, as empresas contribuem muito pouco para a pesquisa científica e tecnológica. Toda vez que se fala que o modelo de financiamento pelo Estado poderia ser modificado, esbarramos no fato de não existir uma cultura das empresas brasileiras de investirem forte no setor. O resultado disso é que, se nós quisermos mudar o modelo sem garantir uma nova fonte de funcionamento, não vai dar certo. Enquanto não tivermos uma outra cultura das empresas, é muito arriscado acabar com o atual formato.

Em relação às grandes áreas de pesquisa, todas são impactadas de modo homogêneo?

Não tenho dados quantitativos para dizer isso, mas as áreas que exigem grandes investimentos laboratoriais são as chamadas exatas e biológicas. Para as áreas que são de forte uso de laboratórios, o corte de verbas pode ser fatal. No caso das Humanas, a proporção do (orçamento) obrigatório é mais alta, o que inclui os salários, por exemplo. Grandes pesquisas que o Brasil fez foi pelas universidades públicas, se falta recurso, temos um atraso grande. Então o corte é uma falsa economia, porque você economiza agora e tem um prejuízo grande no futuro.

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