Rede que presta atendimento à mulher falha em medidas protetivas

Apesar da rapidez na aprovação das ações por juízes, intimações demoram a chegar aos agressores, atrasando a adoção de ferramentas para mantê-los longe das vítimas

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@diariodonordeste.com.br

Ser mulher pesa. Atordoa. Condiciona. Mata. Vide Lívia, morta pelo ex-namorado sexta-feira passada, mesmo tendo registrado Boletim de Ocorrência por ameaça. Ou Talita, assassinada pelo irmão do padrasto domingo. E ainda Tarciana, vida ceifada pelo ex-companheiro antes de ontem. Pelo menos três feminicídios ocorreram no Ceará em quatro dias - e o sangue fresco, quente e jovem ainda escorre pelas mãos de uma sociedade tão machista quanto assassina. E não vai estancar.

De janeiro até agora, 1.399 inquéritos policiais e 7.084 processos de violência contra a mulher foram abertos na Justiça, somente em Fortaleza. Além deles, o total de medidas protetivas concedidas pelo Juizado da Mulher na Capital foi de quase 3.500 em 2018, de acordo com o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) - uma média de 11 ações aprovadas por dia, gerando intimações a serem entregues por apenas nove oficiais de Justiça.

O prazo para a aprovação de um pedido de medida protetiva - ação que pretende preservar a integridade de uma mulher em situação de violência, evitando inclusive feminicídio - é de 48h, como esclarece a titular da Promotoria de Justiça do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher do Ministério Público do Ceará (MPCE), Roberta Coelho. Muitas vezes, segundo ela, a solicitação é julgada até antes do tempo - mas posta em prática com atraso.

"Nós só podemos tomar providências depois que o homem é intimado, e o maior gargalo hoje é a efetivação disso. Numa gama de mais de 20 mil processos, são poucos oficiais de Justiça para levar as intimações", explica, endossada pelo presidente do Sindicato dos Oficiais de Justiça do Estado (Sindojus), Vagner Venâncio, que revela um déficit de 21 profissionais na Central de Mandados da Capital.

"As medidas protetivas sem afastamento do lar devem ser cumpridas em até 72h. Com afastamento, têm que ser imediatas, em até 24h. Estas últimas são priorizadas, mas o número diminuto de oficiais para dar vazão à demanda atrasa as intimações", reconhece, ressaltando que o fortalecimento das "intimações via Whatsapp", já em prática no TJCE, poderia solucionar a sobrecarga dos profissionais e a celeridade da proteção.

No ano passado, 4.576 medidas - incluindo afastamento do lar, distância entre agressor e vítima e proibição total de contato - foram concedidas pela Justiça a fortalezenses. Os dígitos até dão noção, mas não refletem nem previnem as violências que, tantas vezes, aprisionam silenciosas, como frisa a supervisora do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Estado, Jeritza Braga.

"A medida dá uma certa segurança à mulher, mas é óbvio que ela está desprovida da proteção ao feminicídio. Não temos como impedir esses casos. Quando o agressor é preso, o juiz pode substituir a prisão por medidas cautelares, como a tornozeleira eletrônica, que alerta a vítima sobre a proximidade do homem, por meio de um aparelho, e ela aciona a Polícia". O descumprimento de medida protetiva tornou-se crime em abril deste ano, inserido no artigo 24-A da Lei Maria da Penha, que prevê detenção de três meses a dois anos ao agressor.

Proteção

Se, por um lado, a Justiça esbarra na teimosia de um machismo criminoso; por outro, a rede de proteção às mulheres cearenses as acolhe. Um dos equipamentos mais importantes do Estado é a Casa da Mulher Brasileira, no bairro Couto Fernandes, onde a manicure Cícera Renata Saraiva, 37, encontrou saída para os 17 anos de agressões físicas e psicológicas praticadas pelo marido, ex-militar.

"Começou com puxão de cabelo, empurrão, e fui relevando. Fiquei cega à violência, sendo que não é normal. Não conseguia mais trabalhar, porque ele me desmotivava. Se ele não gostava da comida, dava soco na cara, de eu ficar muito machucada. Fiz duas medidas protetivas e tirei, dei entrada no divórcio e desisti. Eu não tinha forças. Só resolvi dar um basta quando meu filho passou a querer revidar", desabafa Renata.

As marcas da violência, porém, ainda latejam no quarto que era do casal, onde ela nem entra mais; nas datas comemorativas que "faz de conta que nem existem", e até nas músicas-lembranças que evita escutar. "Quando sofre violência, a gente se sente incapaz de sair da relação, muitas vezes por vergonha. Eu me orgulho porque consegui. Me sinto outra mulher, mais bonita e capaz. Nós precisamos falar", aconselha.

Segundo a defensora Jeritza Braga, dependência financeira, medo, vergonha e desconfiança na eficiência dos órgãos de Justiça são os principais fatores para o silêncio da violência. "O primeiro passo precisa ser dela, mas pode ser de um vizinho também. Às vezes, as mulheres não sabem que o foco da Lei é proteger a vítima, não querem que o agressor seja preso, pelos filhos, pela família. Se você está ciente de quem sofre, denuncie, chame a Polícia", alerta.

3.652 ATENDIMENTOS POR VIOLÊNCIA

Quase 41 mulheres em situação de violência foram atendidas, em média, na Casa da Mulher Brasileira, em 90 dias, segundo a coordenadora do equipamento, Daciane Barreto. De junho, quando se iniciou o funcionamento, até setembro, a Casa já havia assistido mais de 3,6 mil vítimas.

5.814 INQUÉRITOS POLICIAIS

A violência doméstica e familiar foi alvo da instauração de quase 6 mil procedimentos judiciais em Fortaleza, entre dezembro de 2007 e julho deste ano, conforme o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE). No mesmo período, 15.043 medidas protetivas foram concedidas pelo Juizado da Mulher.

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