Por que unificar a escrita?

Escrito por Redação ,

Em menos de dois meses, deveríamos estar iniciando a reforma ortográfica na língua portuguesa. Isso mesmo, “deveríamos”. Postergada mais uma vez, já que não entrará mais em vigor em janeiro de 2008, o acordo ortográfico agora não tem mais data prevista. Esse fato, diga-se de passagem, é para o alívio de alguns e o incômodo de outros.

Que o tema é polêmico não é novidade. Tanto é que, desde 1990, ano de sua última assinatura, o acordo está engavetado. Na tentativa de acelerar o processo de implantação, a Academia Brasileira de Letras e a Academia de Ciências de Lisboa, por exemplo, concordaram, no último dia 30, na cidade do Rio de Janeiro, sobre a urgência de unificar a ortografia da língua portuguesa.

Na opinião das professoras de Lingüística da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Letícia Pires e Claudiana Nogueira de Alencar, as discussões acerca do tema não devem se restringir às categorias de “a favor” ou “contra”. Para elas, o que precisa ser discutido é se as mudanças não continuarão a servir como pretexto para excluir os que não dominam a norma culta do idioma.

Segundo a mestre em Lingüística e coordenadora do Centro de Estudos em Linguagem (CEL) da Uece, Letícia Pires, a reforma apresenta-se como “um mal necessário”. Como afirma, a língua é predominantemente oral e, por isso mesmo, passível de modificações ao longo dos anos. Porém, mesmo assim, os desvios do padrão adotados pela grande maioria da população não devem ser considerados errados.

De acordo com Claudiana Nogueira, doutora em Lingüística, “a língua é dinâmica, ela varia no espaço e muda no tempo. É também um conjunto de variações, um conjunto de diferenças”. Por conter variações, comenta Claudiana, ela não pode ser “cristalizada” ou, até mesmo, “congelada”.

O problema, como destacam, é que em geral as modificações no padrão da “língua culta” realizadas pelas classes mais populares são consideradas erros. Quando, na verdade, para tornarem-se aceitas socialmente basta começarem a ser utilizadas pelas classes dominantes. “As mudanças vão acontecendo primeiro nas variedades menos cultas, aquelas que não sofrem pressão da norma padrão, por serem faladas por pessoas que não têm acesso à escolarização formal”.

Inclusive, para ela, o próprio termo “culta” é questionável. Afinal, “quando se diz que existe um língua culta é porque há uma inculta”. Dessa forma, como estabelece a doutora em Lingüística, as mudanças, que ocorrem primeiro nas formas não-padrão, vão subindo na escala social e lentamente vão sendo assimiladas pelos falantes mais “cultos”.

Assim, como comenta a professora de Lingüística Claudiana Nogueira, as diversificações sofridas pelo Português vão deixando de ser estigmatizadas, até que, plenamente aceita pelos falantes tidos como “mais cultos”, deixam de ser encaradas como erros.

ENTRE PAÍSES - A língua como bandeira política

Segundo Claudiana Nogueira, doutora em Lingüística, a não aplicação da reforma ortográfica ocorre por a língua ser “uma bandeira política”, como estabelece o titular de Lingüística da Unicamp, Kanavillil Rajagopalan. Como comenta, por ser uma construção, a língua sofre pressões externas relacionadas aos processos históricos, sociais e políticos da sociedade. A exemplo, a lingüista cita a França, logo após a Revolução Francesa de 1789.

“Com a Revolução, a burguesia chegou ao poder e a língua deles, tida como marginalizada, passou a ser a língua da elite”, pontua. Com base no conceito de Rajagopalan, a professora reforça que “a reforma da língua também é uma bandeira política”. Para se ter uma idéia, Claudiana Nogueira remete à colonização.

“A língua sempre foi um palco de relações de poder. Desde o colonialismo, quando um povo chegava para dominar outro. Eles impunham primeiro a língua. A linguagem é a grande cerca que separa as pessoas do poder”, afirma.

Para a mestre em Lingüística Letícia Pires, de fato, a reforma ortográfica apresenta-se como uma forma de “promover o Português”. Afinal, como defende, por se tratar um jogo de poder, a língua unificada seria uma forma de resistência ao “imperialismo” de outras línguas.

“A reforma facilita o uso coletivo de pessoas de Portugal e Brasil, por exemplo, mas o que não se pode é ter preconceito”, pondera Letícia.

Como ressalta Claudiana Nogueira, a predominância das línguas maioritárias sobre as menoritárias é questão de política. “A tentativa de uniformizar a língua sempre existiu, na intenção de sobrepor uma sobre outra e de usá-la para interesses econômicos”. Para ela, o acordo apresenta-se como uma forma de resistência da língua ao processo de globalização.

OPINIÃO DO ESPECIALISTA - MYRSON LIMA
Membro da Academia Cearense da Língua Portuguesa, autor do livro ´O essencial do português´, prof. inativo da Uece e do Cefet, Prof. de Redação e instrutor de empresa.

Acordo ortográfico

O novo Acordo Ortográfico, aprovado pelos integrantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) em 1990, pretende criar uma ortografia unificada entre Brasil, Portugal e as antigas ex-colônias Cabo Verde, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.

Para entrar em vigor, precisa da ratificação de, pelo menos, três dos oito países acima. O Brasil já fez a sua parte em 2005 e, no ano passado, também confirmaram sua adesão a República de Cabo Verde e a de São Tomé e Príncipe.

A fim de disciplinar sua execução, ficou acertada a publicação de um Vocabulário Ortográfico Comum, que se constituiria o documento normalizador, que precederia a vigência do novo sistema. Em Portugal, existem muitas resistências. Há, por causa disso, um evidente desinteresse dos países da CPLP para implantar as novas regras sem a adesão dos portugueses. Seria um desgaste muito grande para tão poucos resultados, especialmente no campo editorial.

É preciso superar essas dificuldades, pois urge promover a unificação ortográfica, como já o fizeram o espanhol, o inglês, o francês, o italiano e o alemão.

Entre as mudanças anunciadas, destacam-se a eliminação do trema, a oficialização das letras K, Y e W, com o conseqüente aumento ao alfabeto para 26 letras, a eliminação das consoantes não pronunciadas, freqüentes em Portugal, a eliminação do acento agudo nos ditongos abertos éi, ói, nas palavras paroxítonas, a supressão do acento em palavras terminadas em dois oo e dois ee, e o reconhecimento da dupla grafia em algumas palavras, como fenómeno/fenômeno, bónus/bônus.

Para nós, brasileiros, que constituímos quase oitenta por cento dos falantes lusofônicos, as mudanças não atingirão tanto a nossa ortografia quanto a portuguesa.

Na linguagem usada pelos jovens e adolescentes na internet, vem o novo sistema oficializar a eliminação do trema e consagrar o emprego das letras K, Y e W, mas não afetará o uso livre e criativo de muitos vocábulos, que sempre ficarão à margem do sistema oficial, seja ele qual for, pois a velocidade da comunicação leva o usuário da internet a simplificar a grafia, como em axo, pq, xau, hj, kd tu, brigado vei, ja ta add, poxa, fds, karamba, bixo, ktraca, cê, bju, bjim, bjs, bjaum, vixe, sds de tu, blz xapa, naum, ksa, kerer, ow,w,w,w,w, intééé, viw, kkkk, xêro pra vc !!!

ENTREVISTA - EVANILDO BECHARA
*Filólogo e gramático da Academia Brasileira de Letras (ABL)

Ortografia uniforme significa uniformidade da língua?

Não. Os que falam a mesma língua podem ter usos e pronúncias diferentes. A ortografia é apenas uma convenção para a escrita, não altera a pronúncia tradicional de cada região. A unificação não significa que os brasileiros vão ter que falar como os portugueses, nem os portugueses como os brasileiros. Unificar a ortografia não significa a unificação da língua. Cada continente continuará a usar o idioma como sempre usou.

Se não haverá grandes interferências, por que há tanta relutância?

O Brasil tem 180 milhões de falantes. Ao somar Portugal e as nações de língua oficial portuguesa terá uns 30 milhões. Portanto, acontecerá que o livro brasileiro terá uma circulação maior e muitos livreiros acham que prejudicará a divulgação dos seus livros. O Brasil exercerá, sem querer, uma concorrência com as editoras portuguesas. E, naturalmente, elas ficam preocupadas com essa ação avassaladora. A relutância é do ponto de vista econômico, não do ponto de vista lingüístico.

A ABL se posiciona a favor da reforma?

Sim, mas isso não significa que a ABL esteja totalmente de acordo com a reforma apresentada. Fizemos concessões porque vimos, em primeiro lugar, a utilidade da unificação. Traz vantagens na difusão da língua portuguesa e para o ensino. Embora a reforma tenha exigido dos hábitos de grafia brasileiros uma cedência maior, vimos o futuro mais do que “casos” que poderemos resolver com o tempo. O acordo não é o “melhor dos mundos”, mas é o que se pode fazer agora.

Como fica a reforma diante da internet, não criará confusão para os jovens?

Não, porque a linguagem da internet se circunscreve à internet. Ninguém, no uso de uma carta, um romance, usará as abreviaturas que a internet usa. É o caso da taquigrafia. Muito mais revolucionária do que a língua da internet, a taquigrafia não usa letras, são sinais. Nem por isso a taquigrafia mexeu no Português. Ela tem seu espaço, assim como a internet.

Há previsão para o início?

Não. O ideal é que cheguemos a um acordo. Há 100 anos estamos tentando. O francês, o espanhol, o italiano, o russo, o árabe já têm um sistema unificado. O empecilho agora é Portugal, mas ele está interessado em uma unificação. O país só acha que em 2008 /2009 é um prazo pequeno para que as editoras se preparem.

Então, por que é preciso unificar a ortografia?

Não podemos perder o trem da história. Fica a língua portuguesa com duas ortografias e isso é um prejuízo cultural. Mandamos para um país africano 500 livros que não chegaram aos alunos porque estavam na ortografia brasileira e eles usam a portuguesa. Se estiver numa só ortografia, os livros circularão livremente entre a América, a África, a Ásia e a Europa.

ALGUMAS MUDANÇAS

  1.  O trema deixa de existir. Isto é, não há mais o acento em palavras como lingüiça, tranqüilidade, conseqüência
  2. Os ditongos ´ei´ e ´oi´ em sílaba tônica da palavra paroxítona não serão mais acentuados.
  3. Tira-se o circunflexo presente na sílaba tônica fechada de certas formas verbais paroxítonas, nas quais há duas letras. Exemplos: lêem, crêem
  4. Desaparece, ainda, o circunflexo de paroxítonas como ´oo´ no final, como vôos e enjôos
  5. As paroxítonas com ´u´ e ´i´ tônicos precedidos de ditongo deixam de ser acentuadas, tais como feiúra
  6. O acento deixará de ser usado para diferenciar ´pára´ (verbo) de ´para´ (preposição)
  7. O alfabeto português deixa de ser composto de 23 letras para contar com 26, com a incorporação das letras ´k´, ´w´ e ´y´

FIQUE POR DENTRO - Uma breve história da ortografia portuguesa

Ao longo dos anos, a ortografia portuguesa dividiu-se em três períodos: o fonético, o pseudo-etimológico e o simplificado. O fonético, inicia-se com os primeiros documentos em Português e termina no século XVI. As palavras eram escritas como eram pronunciadas.

O seguinte, o pseudo-etimológico, dura até o ano de 1904. Aqui, as palavras eram escritas conforme a gramática de origem, reproduzindo todas as letras, embora não pronunciadas. O simplificado inicia com a publicação da Ortografia Nacional. Por ela, havia a proscrição absoluta de todos os símbolos da etimologia grega; a redução das consoantes dobradas a singelas (rr,ss); eliminação das consoantes nulas e regularização da acentuação gráfica.

Fonte: Livro Gramática Histórica, de Dolores Carvalho.

JANINE MAIA
Repórter

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