Por que a feira da Rua José Avelino resiste ao passar dos anos?

O processo de ocupação das ruas por vendedores ambulantes é histórico e se construiu junto ao próprio Centro de Fortaleza, onde se concentram os comerciantes que coexistem com as fiscalizações diárias

Escrito por Barbara Câmara , barbara.camara@svm.com.br
Legenda: Nas ruas José Avelino com Avenida Alberto Nepomuceno é intenso o fluxo de ambulantes, comerciantes e compradores
Foto: FOTO: JOSÉ LEOMAR

O movimento intenso que percorre parte da Avenida Alberto Nepomuceno e se estende pela Rua José Avelino durante as primeiras horas da manhã, no Centro de Fortaleza, faz parte não só do dia a dia, mas da história do bairro. A feira, que reúne o comércio ambulante no coração da cidade, gera indagações ao resistir às iniciativas de ordenamento urbano com o passar do tempo - e há motivo para tal.

A dinâmica que se estabeleceu no local é descrita por Eustógio Dantas, professor de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), como uma construção "longa e de densidade excepcional". Segundo ele, a prática se apresenta na cidade com força e importância desde os seus primórdios.

"Existem vários trabalhos que falam sobre a Fortaleza antiga, obras literárias como 'A Normalista', onde você localiza inscrições belíssimas sobre o movimento dos ambulantes no Centro da cidade, vendendo as suas mercadorias", lembra o professor e sócio efetivo do Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará.

O comércio ambulante, segundo ele, também não foi eliminado em outros países, incluindo os desenvolvidos. O máximo que se consegue é "um certo controle". Em Fortaleza, os vendedores são identificados mais frequentemente como parte de grupos de "baixo poder aquisitivo", que encontram no comércio ambulante uma condição ou possibilidade de sobrevivência, ou, ainda, uma maneira de tentar mudar o estilo de vida e adquirir bens.

Articulação

"Há ambulantes que têm um poder aquisitivo razoável, que se transformam até em fornecedores de mercadorias para outros ambulantes que não tiveram a mesma sorte", destaca. Os primeiros vendedores a conduzirem essa atividade na Capital seriam oriundos do Sertão, onde a prática do plantio e do comércio era comum. Ao chegarem na cidade, a inserção social e o próprio viver acabaram sendo facilitados pela habilidade que já conheciam e dominavam.

O real motivo pelo qual a atividade se mantém ano após ano, de forma intensa no Centro, é complexo. Um dos fatores que contribuem para a situação é a dinâmica que se dá entre lojistas, permissionários e ambulantes. "Ao invés do conflito, há uma complementação entre o comércio formal e o informal. E os vendedores ambulantes têm uma capacidade de organização e articulação muito complexa, que evita a fiscalização", pondera Dantas.

Além da organização social, a própria estrutura urbana do bairro facilita a formação da feira. O processo de transformações do uso do Centro de Fortaleza, de acordo com o presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Ceará (CAU/CE), Napoleão Ferreira, é histórico. Ele explica que o local sofreu uma transição, deixando de ser um polo de serviços "sofisticados" para se transformar em um centro de comércio popular.

"O Centro de Fortaleza detém 10% do PIB do Estado, o que está ligado diretamente à atividade do comércio popular. O bairro ainda tem outro lado, principalmente o setor de confecções, cujos compradores são pequenos comerciantes que vêm da região Norte do País para comprar e revender. Isso também é muito significativo nas feiras noturnas do Centro", afirma.

Complementar

É pelas calçadas da Rua José Avelino que a vendedora Vanderlânia Freitas, 47, conduz seu carrinho repleto de dindins de diferentes sabores, para complementar a renda da família composta por ela, o marido e os três filhos. Natural de Manaus, no estado do Amazonas, Vanderlânia chegou à Fortaleza há oito anos, e se ambientou com facilidade na feira que a recebe quatro vezes por semana.

"Eu já vendo aqui há três anos, e sempre é bom. Tenho uma meta de vender pelo menos 100 dindins por dia, mas sempre supero. Vendo 150, 200. Quinta-feira é o dia que mais rende", revela.

Vanderlânia reconhece as dificuldades de tirar o sustento da feira de rua, mas sua altivez e cumplicidade com os demais ambulantes são incentivo no dia a dia. "O trabalho, pra mim, é motivação pra viver. Se reclamar, a gente não vive", declara.

Por outro lado, se optasse por reclamar, não estaria sozinha. A comerciante Cristiane Gonçalves, 50, teve tempo o suficiente para entender como funciona a feira, onde trabalha há dez anos. Seu ponto cativo, onde expõe as peças de roupas para os clientes, é no cruzamento entre a Avenida Alberto Nepomuceno e a Rua José Avelino, e a reclamação só começa quando o trabalho é interrompido.

"Está cada vez pior. Eu chego aqui de madrugada, de terça-feira a domingo, e geralmente só mandam a gente sair por volta das 8h. Hoje, 6h30 já 'tavam' aqui. É difícil, a gente só 'tá' aqui pra trabalhar", lamenta. A poucos metros de distância, a lojista Ariane Maria, 24, aguarda a chegada de clientes atrás do balcão de seu estabelecimento, espaço alugado, onde vende roupas femininas. Ela observa a movimentação de feirantes e fiscais há quatro anos, e não vê problema na presença dos ambulantes. Pelo contrário.

"Pra gente que tem loja fixa, é bom. Eles atraem mais clientes. Quando eles não estão na rua, o movimento é baixo, mas nos dias de feira, o pessoal passa pra olhar os produtos e, no caminho, já entram nas lojas", revela.

'Disciplina'

O ordenamento urbano e a disciplinarização de espaços públicos são os principais objetivos do trabalho exercido pela Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis), conforme define Reginaldo Araújo, gerente de plantões e atividades especiais do Órgão. Ele explica que, apesar de existir uma poligonal de ruas no entorno que influenciam a quantidade de ambulantes no Centro, a Agefis trabalha rotineiramente na Rua José Avelino, de forma intensificada, em parceria com a Guarda Municipal.

"No fim do ano, existe um aumento como um todo no número de pessoas que vão para comprar, já que o mercado está mais aquecido, e acabam se misturado entre os ambulantes, por isso esse aumento no fluxo", diz. Ele diz que a Prefeitura dispõe de áreas autorizadas para ambulantes, e que é possível procurar a Secretaria Regional e solicitar uma autorização para comercializar.

"Nós temos 40 agentes trabalhando rotineiramente no Centro. Por surgir esse maior movimento, vamos aumentar o efetivo em torno de 20%, entre fiscais e auxiliares de fiscalização, a partir de novembro", ressalta.

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