Pela educação, mulheres vencem desafios e alcançam sonhos

Conheça a história de duas mulheres que encontraram na escolarização formas de superar barreiras. Uma delas enfrentando uma doença crônica; a outra, um cenário financeiro adverso

Escrito por Kilvia Muniz , metro@verdesmares.com.br

Legenda: "Não vou deixar o medo tomar conta de mim. Porque se eu alimentar, vou me anular, não vou viver. Se não tivesse feito isso, não teria vivido tanto", Maria Sângela de Sousa
Foto: Foto: José Leomar

Tabuleiro do Norte, 1984. As vizinhas vinham conversar e olhavam a menina, pálida, dentro de casa. Daí, exortavam logo. "Railda, cuide dessa menina, não deixe ela sair de casa, não. É doentinha"

A menina em questão, Maria Sângela, era a quinta de quinze filhos de Railda e Macário, nascida na zona rural do município com um mal complicado de pronunciar e, mais ainda, de conviver. Doença de Von Willebrand. Tipo III, o mais grave. Genética, a coagulopatia causa frequentes sangramentos. "Eu acho que 1% do meu sangue, no máximo, consegue coagular", explica.

O diagnóstico veio aos 13 anos, num momento delicado para qualquer mulher: a primeira menstruação. O fluxo intenso fez a menina parar na emergência do Hospital das Clínicas, em Fortaleza. O irmão descobriu a mesma doença no mês anterior. Ela já tinha perdido duas irmãs gêmeas para o mal, durante o parto, por hemorragia.

Na adolescência escondia a doença, por vergonha. A vida era "escola, casa, Hemoce". O único tratamento possível era um remédio que só podia ser aplicado no Hemoce.

Nesse contexto, sob os olhares dos vizinhos, em meio às crises constantes de hemorragias, a mãe, Railda, professora primária, sabia bem que caminho apontar para a filha: a educação.

"Ela não se intimidou com a doença. Eu acho até que, por conta disso, me incentivava. Eu ficaria condenada a ficar em casa, como antigamente tratavam, né?". Então, Sângela decidiu. "Eu não sou doentinha, não posso me entregar a isso. Aí eu me dediquei a estudar. Eu devorava livros por livros."

Impulsionada pela leitura, a menina decidiu fazer faculdade. Passou para História na Uece/Fafidan (Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos), em Limoeiro do Norte, mas não pôde fazer a matrícula porque estava em crise, internada. Quando melhorou, tentou de novo e passou em 1996. O percurso de Tabuleiro a Limoeiro podia ser simples para qualquer outra pessoa, mas para ela, era um risco diário. Qualquer pancada podia ser o estopim para uma hemorragia fatal.

Formada, decidiu fazer mestrado em Pernambuco, no ano de 2001. Em 2002, passou no concurso estadual para professora no Ceará. E em 2012, foi aprovada no concurso da Uece.

Em 2017, decidiu fazer doutorado em História Social na Unicamp. Àquela altura, já estava casada com o moradanovense Tomé e Silva, com quem está há 30 anos. O casal partiu pra São Paulo e chegou em fevereiro. Em junho descobriu algo que iria mudar a vida para sempre. Estava grávida.

A gravidez não é recomendada para quem tem tendência à hemorragia pelos riscos do pós-parto. "No primeiro momento, fiquei com medo e quando você fica com medo você se retrai, você se isola. Mas aí, depois, você pensa no sonho de ser mãe, que nem era possível".

No último mês de gravidez, ficou internada. A indicação era de parto normal, mas foi necessária a cesárea. E, assim, Ana Clara nasceu. Saudável, sem a doença. Para Sângela, foram 3 meses de tratamento para controlar os sangramentos.

Quando a bebê tinha 9 meses, a professora encarou seu principal medo: hemorragia interna. Levou uma pancada, trabalhando e, além disso, um cisto estourou no útero. Ficou na UTI, entre a vida e a morte. A vida venceu.

Hoje, com 47 anos, Sângela é doutora em história e já publicou dois livros. A família mora em Morada Nova e com novos medicamentos, que podem ser aplicados em casa,tem qualidade de vida. Ana Clara já está com 11 anos, segue saudável e, articulada. O marido é só orgulho.

Para a professora, a grande lição que a vida ensinou é que o medo, principalmente, da morte, é uma prisão que precisa ser vencida. "Não posso alimentar esse medo. Porque se eu alimentar, eu vou me anular, eu não vou viver. Então, não vou deixar o medo tomar conta de mim. Se não tivesse feito isso, não teria vivido tanto", conclui emocionada.

Dedicação

O cenário, agora, é o Grande Bom Jardim, na capital. No quarto simples, Mickaelly se debruça sobre enormes livros. É uma aluna aplicada e tem uma meta clara: se tornar uma enfermeira especializada em saúde da mulher. Quem vê a dedicação da jovem de 28 anos não imagina que ela, hoje, vive um sonho que achava ser impossível.

Legenda: "Eu quero tentar servir de inspiração, como profissional que tenta agregar e que tenta mudar a realidade de tantas mulheres", Mickaelly Moraes
Foto: Foto: José Leomar

"Durante muito tempo eu achava que eu nunca ia chegar a uma universidade". Filha de empregada doméstica e catador de latinhas, a jovem sempre estudou na rede pública de ensino.

Passou por muitas dificuldades. "Juntando os três anos de ensino médio, eu cheguei a ter quatro aulas de química. A gente chega no Enem sem saber nada, nem o básico". Ao fim do ensino médio, em 2009, seguiu direto para o mercado de trabalho para ajudar em casa com as despesas. Trabalhou 3 anos com telemarketing até que ficou desempregada.

Foi nesse período que decidiu aproveitar o tempo livre para se dedicar aos estudos. "Fui estudar por conta própria. Assistindo vídeos no Youtube, pesquisando na internet. Era bem difícil porque na minha casa, meu irmão, meu pai, meu sobrinho e eu vivíamos com o salário da minha mãe, empregada doméstica."

Foi só em 2015 que conseguiu bolsa do Prouni (Programa Universidade para Todos) para cursar Enfermagem. Atualmente está no sexto semestre (de dez) e já estagia na área, na Caixa de Assistência dos Fazendários do Estado. "Hoje eu faço algo que eu amo, que eu lutei tanto para conseguir e está sendo incrível".

Usa a internet para inspirar outras jovens. Tem uma página no Instagram, chamada "Enfermagem Comentada", na qual compartilha informações sobre a área. Também fala de sua história na conta pessoal. "Tento passar para as outras meninas que elas conseguem, que elas também podem, não só pela questão da Enfermagem, mas a ciência em si, que é uma área onde a gente, infelizmente, ainda tem poucas mulheres".

Mickaelly defende que muitos aspectos da saúde da mulher são negligenciados. "Uma mulher que sofre violência, como é atendida em uma unidade básica de saúde? Como é vista? Eu quero tentar servir de inspiração como profissional que tenta agregar e que tenta mudar a realidade de tantas mulheres que existem não só na nossa cidade, mas no Brasil todo", defende.

Doença de Von Willebrand

É uma coagulopatia que causa hemorragias constantes pela ausência da proteína Von Willebrand no sangue do paciente. Sem o fator, a pessoa sangra com mais facilidade e , se não for tratada, pode vir a óbito. O diágnóstico é feito no Hemoce assim como a distribuição dos medicamentos. O tratamento é gratuito e oferecido pelo Ministério da Saúde.

Pacientes

No Brasil, 7.220 pessoas possuem a doença de acordo com o Ministério da Saúde. No Ceará, o Hemoce atende 234 pessoas.

Hemofilia

Diferente da doença de Von Willebrand, a hemofilia é a ausência das proteínas 8 ou 9 na coagulação sanguínea do paciente.

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