Enem é porta para reinserção social de pessoas privadas de liberdade

Internos de unidades prisionais cearenses realizarão o exame nos dias 11 e 12 de dezembro, mas já têm rotina transformada desde o processo preparatório

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@diariodonordeste.com.br

A prova de redação já passou, os temas abordados no domingo já tomaram rodas de conversa e redes sociais, e o segundo dia de provas já é esperado por mais de 300 mil cearenses inscritos no Exame Nacional do Ensino Médio 2018. Para 1.134 deles, porém, tudo segue desconhecido, e as provas só chegam às mãos nos dias 11 e 12 de dezembro, quando será realizado o Enem para Privados de Liberdade (PPL) em 75 penitenciárias do Estado.

Somente na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), 653 internos de 16 unidades prisionais estão inscritos no exame, muitos deles pela primeira vez – como Joilson Ferreira, 31, que estudava em um curso pré-vestibular para cursar Direito quando foi preso, há dez meses, acusado de tráfico de drogas. Hoje, a mente se ocupa de uma divisão simples e dura: entre pensar na liberdade e se desligar para conseguir dormir.

“Temos muito pouco tempo pra estudar nas aulas, e na cela é complicado. A capacidade é pra seis presos, mas ficam até 12, e sempre vai ter um pra atrapalhar e abater a fé da gente. Mas vou passar no Enem e fazer Direito, porque quero justiça, e não injustiça. Ser preso até abriu meus olhos pra me interessar mais em cobrar o que não é cobrado”, sentencia Joilson, cujo semblante pesado só alivia ao fugir para as linhas da obra preferida descoberta atrás das grades: o romance de A Bela e a Fera.

Direito

Além do ex-motorista particular, mais 108 internos da Casa de Privação Provisória de Liberdade Agente Elias Alves da Silva (CPPL 4) enfrentarão a maratona de questões e a redação do Enem, no mês que vem. A produção textual, aliás, é o que menos assusta Marcos Kayque, 19, que estreia no exame nacional com o sonho de voltar a estudar Administração, carreira interrompida pelo roubo de carro que o levou ao cárcere.

“Acho que vou me sair bem em matemática e história, que são as matérias que estudo aqui. E redação também, porque sou bom. Já fui premiado três vezes como melhor texto, no colégio”, orgulha-se o jovem, numa mescla entre passado e futuro, arrependimento e esperança, típica da pouca idade. “Lá fora a gente tem muita oportunidade, aqui dentro são poucas, mas temos que agarrar. Prefiro estar aqui na sala estudando do que num banho de sol. Estudar ajuda a passar o tempo, a aliviar a mente. Isso tudo conta”.

A privação da liberdade pelo cometimento de um crime pode representar, aos olhos da sociedade, a perda de qualquer direito humano, inclusive o de ser. Estudar, assim, seria privilégio inconcebível – noção tão errada quanto rebatida pela Lei de Execução Penal (nº 7.210), que determina como obrigação do Estado garantir assistência educacional, “instrução escolar e formação profissional do preso e do internado”.

Resgate

No Ceará, de acordo com o assessor educacional da Sejus, Rodrigo Moraes, 39 unidades prisionais contam com escolarização, com cerca de 1.800 internos matriculados nos ensinos fundamental e médio. “A educação dentro das unidades vai além de elevar o nível de escolaridade. Resgata a autoestima, a autonomia, a identidade, que muitas vezes é perdida pela privação. Isso gera um ambiente de pacificação: o pavilhão com maior número de alunos é o mais calmo”, ressalta o educador, endossado por Jefferson Oliveira, preso há dois dos 25 anos de idade.

“Uma boa pessoa precisa ter uma boa formação, tem que ter os estudos como prioridade. Apesar de todas as dificuldades de estar num local que não é apropriado pra estudar – porque é quente e tem os danos psicológicos, o que dificulta um bom desempenho –, eu tenho boas expectativas”, declara Jefferson, que fará Enem pela quinta vez, a segunda em privação de liberdade. Em uma delas, foi aprovado em Engenharia Civil numa faculdade privada, mas não recebeu autorização judicial para cursar.

A Sejus destaca que a metodologia do Enem PPL é a mesma do convencional, seguindo os mesmos protocolos de segurança das provas. A Pasta “garante a inscrição e auxilia no processo de matrícula, mas cabe ao Judiciário a liberação do interno para cursar o nível superior”. “Se o regime for fechado, muitos juízes não liberam. O fato de o preso lograr êxito não é porta para a liberdade. Alguns juízes exigem escolta, todo um aparato inviável. Uma estratégia que adotamos é inscrevê-los em cursos à distância. Esse talvez seja o caminho”, aponta o assessor educacional.
 

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