Descriminalização do Aborto: de quem é a palavra final?

Escrito por Redação ,

Pessoas e instituições da Sociedade Civil, Religião, Ciência e Justiça opinam sobre Audiência Pública no STF que discute a descriminalizar o aborto no Brasil. O futuro da questão depende da lei, da medicina ou das próprias mães?

A pílula pequena e difícil de engolir não traz consigo nenhuma certeza. O cenário pode ser de sucesso ou complicação; circunstância ou escolha; vida ou morte. Agulhas, remédios e chás denunciam: o aborto é considerado crime no Brasil mas, nem por isso, irreal. Durante os dias 3 e 6 deste mês, 53 pessoas físicas e instituições discutiram a descriminalização da prática no Brasil, em audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF), onde cada um argumentou, em 20 minutos, sobre o futuro de milhões de ventres. 

Segundo o Ministério da Saúde (MS), estima-se que entre 983,7 mil e 1,1 milhão de procedimentos tenham sido realizados por ano, de 2008 a 2017, em todo o País pela população feminina de 10 a 49 anos. Os números oficiais são menores, visto que, por ainda ser considerado crime, muitas mulheres se submetem ao procedimento de forma clandestina e, assim, não viram estatísticas.

Pelo menos não geralmente. O MS estima também que no mínimo duas mil mulheres tenham perdido a vida nos últimos dois anos, em decorrência de um aborto malsucedido. Este é um exemplo de morte materna, aquela onde uma gestante vai a óbito devido a alguma complicação. O Sistema Único de Saúde (SUS) realizou, em 2017, 1.636 procedimentos legais de aborto, quando a mulher engravidou após um estupro, em casos de risco de vida para ela ou de fetos anencéfalos.

No período de 2016, foram registradas 172.750 curetagens, com o custo de R$ 37,2 milhões ao Estado. Curetagem é o procedimento feito à mulher que busca atendimento após alguma complicação, como hemorragia ou infecção por resíduos do tecido morto. Nos últimos 10 anos, o SUS gastou cerca de R$ 500 milhões somente em tratamento das complicações de aborto.

As pessoas precisam sair desse conservadorismo que não nos deixa discutir de forma madura. Aborto não é uma questão de ser a favor ou contra, é uma questão de debate Diana Maia, ativista do Fórum Cearense de Mulheres

A Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (Sesa) garante que quatro hospitais no Estado prestam assistência a mulheres que estejam em um dos três grupos que realizam o aborto legalmente. De acordo com a Pasta, em 2017 o Ceará teve 28 registos. “A Sesa está desenvolvendo um plano de ação estratégica para ampliação do serviço especializado em saúde no atendimento a pessoas em situação de violência doméstica e sexual”, destacou em nota.

Para a professora de ginecologia e obstetrícia da UFC, Zenilda Bruno, trata-se de uma questão de saúde pública. “O que ocorre é que elas fazem o aborto sem o acompanhamento de um profissional de saúde e é por isso que vêm os problemas, até mesmo a morte. O que eu realmente defendo é que haja essa descriminalização, porque na hora que não for mais considerado crime, as mulheres vão procurar um serviço de saúde que seja adequado para esse procedimento”, opina.

“Os gastos com a prevenção são muito menores do que os que tratam o problema depois de ocorrido. Uma pílula anticoncepcional custa de R$ 10 a R$ 20. O aborto, a infecção, as medicações decorrentes das complicações custam, em média, R$ 200 por ampola. Acontece uma inversão total da questão dos gastos, do que deve ser prioridade. Ou seja, a criminalização favorece os gastos maiores”, revela Zenilda.

Atualmente, é crime induzir a interrupção de uma gestação. A pena varia de 1 a 3 anos, e de 3 a 10 no caso do médico. A Secretaria da Justiça e Cidadania do Estado do Ceará (Sejus), confirmou que nenhuma mulher está reclusa no Sistema Penitenciário cearense por aborto. “Realmente existem poucos processos assim em andamento na Justiça. Consequentemente poucas pessoas detidas. O que se nota é que muitas vezes os casos não são sequer descobertos, bem como parece que há complacência de parte da sociedade com a prática do aborto a despeito de ser considerado crime”, explica o advogado criminalista e professor de Direito Penal da Universidade de Fortaleza (Unifor), Márcio Vitor Meyer de Albuquerque.

Para a audiência pública no STF, 502 inscrições foram recebidas pelo Tribunal. Os escolhidos demonstram parcialidade, de acordo com o coordenador do Movimento em Favor da Vida (Movida), Fabiano Farias. “Não houve um equilíbrio. Cerca de 75% dos que falaram foram pró-aborto e somente 25% pró-vida. Foi uma verdadeira disparidade e bem insensata. Além disso julgamos que o ato foi inconstitucional pois o STF não tem o poder de legislar. Essa foi totalmente uma estratégia pró-abortista”, destaca.

Fique por dentro
A legalização no mundo

Segundo um levantamento do Center for Reproductive Rights, ONG baseada nos EUA que trabalha para influenciar a formulação de políticas públicas pró-aborto, em todo o mundo, a prática é legalizada em 63 países, dentre eles a Itália, um dos lugares mais religiosos do mundo, e os Estados Unidos, onde as leis são aplicadas por cada estado. A última nação a fazer parte do grupo é a Irlanda, que em referendo realizado em maio, aprovou a legalização.

O aborto é amplamente permitido em outras 13 nações, onde as leis, na prática, funcionam de maneira semelhante aos que legalizaram a prática sem restrições. São nações que permitem o aborto caso a mulher argumente que não tem condições econômicas ou sociais para ter um filho - Barbados, Belize, Chipre, Fiji, Finlândia, Grã-Bretanha, Hong Kong, Índia, Islândia, Japão, São Vicente e Granadinas, Taiwan e Zâmbia.

Na contramão, 124 países proíbem a interrupção da gravidez totalmente ou com poucas exceções. Dentre os locais em que a prática é legal, as regras variam quanto ao tempo da gestação. A maioria estipula o mesmo tempo máximo que está sendo proposto para o Brasil: 12 semanas de gestação. Em Singapura, o aborto é permitido em até 24 semanas.

O senado da Argentina rejeitou, no último dia 9 de agosto, o projeto de lei que legalizaria o aborto no país, mas a pauta sobre o aborto deve voltar ao Congresso do país vizinho ainda este mês. Toda a tendência das discussões podem influenciar as decisões no Brasil.

O advogado Márcio Vitor, no entanto, acredita que o debate no âmbito do STF é positivo, já que o tema geralmente causa polêmica não só no Brasil, mas em vários países. “Para mim, a saída não seria apenas a criminalização, já que ela se mostra de certa forma ineficaz, mas a educação, bem como o amparo social principalmente no caso de famílias mais humildes. O Estado e a sociedade devem amparar aquelas mães que não têm condição financeira de assumir o filho e não autorizar o aborto por razões econômicas”, defende.

A responsabilidade do Estado também é reivindicada pelo Fórum Cearense de Mulheres, grupo formado por cerca de 30 militantes em favor dos direitos femininos. “Nós não defendemos somente a descriminalização, mas a legalização, pois com ela, a mulher realmente teria autonomia sobre seus corpos e poderia escolher ou não realizar o aborto, mas de toda forma, em um procedimento seguro e assistido pelo Governo”, argumenta Diana Maia, ativista do Fórum.

“As pessoas precisam sair desse conservadorismo que não nos deixa discutir de forma madura. Aborto não é uma questão de ser a favor ou contra, é uma questão de debate. Ninguém vai passar a ser obrigada a abortar, com a descriminalização. É apenas que a mulher vai ter esse direito. As mulheres não são assassinas. Nós é que paramos no cemitério. Chega de um discurso machista, patriarcal e de uma cultura do estupro dentro de um tema que não é simples”, enumera Diana.

O Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-CE) foram procurados pela reportagem pelo posicionamentos dos órgãos sobre o assunto. O MP relatou não ter nenhuma seção específica mas que atua no combate ao aborto clandestino. A OAB-CE não argumenta sobre o tema pois o Conselho Federal não tem consenso. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) diz ser em defesa da integralidade, inviolabilidade e dignidade da vida humana, desde a sua concepção até a morte natural, condenando, assim, todas e quaisquer iniciativas que pretendam legalizar o aborto no Brasil.

O Ministério da Saúde adianta que cabe aos profissionais do SUS atender as mulheres nessa situação, prestando todos os cuidados necessários de acordo com cada necessidade local. “Os profissionais têm medo de abordar este assunto e lembrar que não se deve julgar a paciente. Tem sim que mostrar os riscos reais mas a escolha é apenas dela, pois é a mulher quem está na situação”, pontua a professora Zenilda Bruno.


O QUE ELES PENSAM
A posição dos gerentes de uma ONG e de um hospital

"Um bebê com 12 semanas não é um aglomerado de células nem uma junção de sangue, como dizem os pró-abortistas. Já é um ser com vida, já tem carga genética. Se a lei garante a legalidade em três casos, que continue. Mas o que não queremos é que avançe. E acreditamos que descriminalizar é um passo para legalizar Fabiano Farias, Coordenador da ONG Movimento em Favor da Vida (Movida)

"Quando eu digo que sou a favor da descriminalização pode ser interpretado que eu sou a favor do aborto e isso faz com que os profissionais e professores tenham medo de abordar isso. Não é ser a favor ou não. Ninguém é. Nem quem faz o aborto. Ninguém quer tirar a vida de ninguém, a gente não quer é morrer Zenilda Bruno, Professora de Ginecologia e Obstetrícia da UFC e Diretora médica da Maternidade Escola


Segundo Zenilda, que também é diretora médica da Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac), onde trabalha há 30 anos na prevenção da gravidez em adolescentes, o índice de mulheres que se submetem ao aborto é mais alto em jovens. Alanis (nome fictício) tinha 19 anos quando interrompeu sua primeira gestação. A gravidez inesperada veio junto com a desaprovação e falta de apoio da família e namorado. Ela se viu com medo e angustiada, “no pré, durante, e no pós”, conta.

Alanis descobriu de surpresa a gravidez em quatro semanas. As cinco posteriores foram de agonia e noites em claro, em busca de remédios que a auxiliassem na interrupção. A decisão foi de prontidão. “Não quis ter porque era uma responsabilidade muito grande. Eu e nem meu namorado tínhamos, eu não me enxergava como mãe. E não ia ter um bebê indesejado, que crescesse pensando que era um peso em minha vida”, desabafa.

Atualmente, a pena para quem pratica o aborto no Brasil varia de 1 a 3 anos, e de 3 a 10 no caso de o acusado ser médico

Alanis procurou pelo medicamento mais comum ao procedimento clandestino, o "Cytotec", encontrado em farmácias para a prevenção de úlcera do estômago. Não teve facilidade de encontrar as pílulas pois seria preciso uma receita. Ela comprou 5 comprimidos no valor de R$ 550. A vendedora havia comprado para si própria, mas desistido de usar. A primeira pílula favoreceria o efeito das outras quatro. Depois foram duas via oral e duas via vaginal. 

As doses, conta Alanis, eram cinco vezes maiores que as indicadas e oferecidas por médicos adequados. Engoliu ainda assim. Em seguida, seu corpo virou depósito de dor e pareceu não conseguir expulsar todo o sangue que desejava. Foram três dias de uma imensidão vermelha com odor de morte. 72 horas depois (o indicado são 48h), Alanis encontrou coragem para ir a uma clínica.

Precisou fazer uma raspagem. Alega ter sido maltratada por médicas e enfermeiras por ter tomado uma decisão sobre seu próprio destino. “Um dia, uma enfermeira me cedeu a comida sem talher. Quando perguntei ela disse que havia acabado. Era mentira. No outro, uma médica foi me examinar e não esperou sequer que eu abrisse as pernas. Chorei eu e minha amiga, que viu tudo”, relembra. Ela revela que, já no Hospital Público, passou 6 dias até que a raspagem fosse completada e que nem mesmo a acompanhante teve direito.

A mãe só descobriu depois de todo o processo. Alanis conta que somente em abraços de outras mulheres achou acolhimento. “Depois de conversar com outras meninas, descobri que convivia com muito mais mulheres que fizeram isso do que eu pensava. Minha avó fez, com um aparelho de sucção. Uma tia retirou o terceiro filho. Duas outras amigas também me revelaram aborto. Toda mulher tem uma história para contar sobre isso, se não foi ela, foi um conhecido íntimo. E foi melhor saber que eu não estava sozinha”, redesenha.

O pior, conta Alanis, foi toda a violência e julgamento que precisou passar e ouvir vindo de quem mais confiou. No Hospital, foi submetida a dividir leitos com mulheres que acabaram de ter bebês, em um momento de grande constrangimento. “Tive pesadelos e crises de pânico durante um ano. Na verdade, não acho que vou me recuperar nunca. Qualquer atraso na menstruação me deixa desesperada”, conta, sobre o trauma que será eterno e que se repete em sua vida mês após mês.

A ministra Rosa Weber foi a relatora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que entende que o aborto voluntário deve ser permitido até a 12ª semana de gestação. Este é o máximo de tempo ideal, de acordo com a professora Zenilda Bruno. “Depois disso é bem mais difícil para a mulher pois o bebê já até se mexe. Fora o constrangimento da equipe de médicos”, diz. Atualmente, após a 12° semana só é possível abortar com o auxílio da Justiça em casos específicos.

Alanis revela que não faria o procedimento após esse período. “Mesmo muito decidida, eu jamais faria depois de três meses de gravidez porque já causaria dor ao embrião. Pesquisei muito antes e enquanto não achei os remédios até a nona semana, não sosseguei”. O feto de 12 semanas tem 8 centímetros e com braços, mãos e unhas bem definidas. “Já é vida”, conforme o Movimento em Favor da Vida (Movida). Segundo uma pesquisa de opinião realizada pelo Instituto Ampla, divulgada nesse mês de agosto com 1.111 cearenses, 92,7% são contrários à prática do aborto.

A relatora Rosa Weber deverá preparar o voto e o relatório do caso - um resumo das alegações do PSOL e do posicionamento dos órgãos chamados a se manifestar. Não há prazo para que isso aconteça. No julgamento de um habeas corpus em 2016, a ministra se posicionou favoravelmente a que o aborto deixe de ser crime. Por isso, há uma expectativa de que Weber se manifeste a favor do pedido para que o aborto seja descriminalizado.

“Um passo para a legalização”, acredita Fabiano Farias, coordenador do Movida. Eles temem que a descriminalização ocorra, de fato. Após concluir o voto, Rosa Weber deve pedir a inclusão do processo na pauta de julgamento do plenário do Supremo. “Continuaremos acompanhando do nosso jeito”, define Fabiano. “A gente não vai parar de lutar para dar essa resposta às mulheres, em defesas de suas vidas”, complementa Diana Maia. 

O caso que ilustra a reportagem, relatando a história da personagem Alanis, não aconteceu na Maternidade-Escola. A instituição esclarece "que nenhum profissional tem autonomia para emitir opinião pessoal em nome da instituição e que, portanto, as falas da médica Zenilda Bruno, citada como diretora médica da Meac, não refletem o posicionamento do hospital, somente as próprias opiniões da profissional. Como hospital universitário federal não cabe à Meac debater qualquer legislação vigente, somente cumpri-la". (Colaborou João Duarte).

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