Ausência de símbolos ‘apaga’ existência de campos de concentração em Fortaleza

A falta de vestígios físicos em Fortaleza dissimula os horrores de um tempo em que retirantes da seca foram confinados em terrenos próximos à via férrea na Capital para evitar que espalhassem a miséria e o flagelo pela cidade

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@diariodonordeste.com.br

Não há ruínas. Também não há referências que indiquem o que ali aconteceu. Não há orientação, monumentos. O chão pisado nos bairros que abrigaram os campos de concentração da seca em Fortaleza parece comum a tantos outros da cidade. A ausência de marcas dissimula os horrores de um tempo em que, por iniciativa do poder público, retirantes eram concentrados em terrenos cercados.

A intenção era evitar que os migrantes se espalhassem pela Capital. Advindos do interior, penavam a miséria aglomerados. Em estruturas precárias, sobreviviam submetidos à vigilância do Estado. Se em Senador Pompeu, a 273 km de Fortaleza, as ruínas a serem tombadas oficialmente hoje reafirmam a existência dos campos de concentração no Ceará, na década de 1930, na Capital, a ausência de vestígios físicos relega ao esquecimento esse capítulo cruel da história. 

Os registros oficiais apontam a existência de três campos de concentração em Fortaleza, em períodos distintos. Estas áreas, ressaltam historiadores, embora tenham recebido este nome, não podem ser “confundidas” com os campos de extermínio da Alemanha, no regime nazista.

A semelhança, enfatiza o historiador Airton de Farias, está ligada à ideia de controle sobre uma determinada população. No mais, os campos de concentração do Ceará não tinham a finalidade de exterminar a população abrigada, apesar de as condições sanitárias desses locais configurarem riscos profundos aos retirantes.

“Os campos tinham uma função prática de controlar a população pobre, os flagelados, como eram chamados na época, as pessoas que vinham do interior para Fortaleza atrás de auxílio. As pessoas eram colocadas nesses campos, separados homens e mulheres”.
 

O primeiro campo de concentração na Capital, registram os documentos oficiais, nasceu em decorrência da seca de 1915, quando os chamados abarracamentos – barracas espalhadas pela cidade –, deram lugar a áreas de concentração dos migrantes. Os retirantes que chegavam, sobretudo, pela via férrea, eram contidos nesses grandes terrenos para evitar, dentre outras coisas, que passassem a vagar pela cidade ampliando cenários de pobreza. 

A ideia do primeiro campo de concentração partiu do governador do Estado, coronel Benjamin Liberato Barroso. Em mensagem enviada à Assembleia Legislativa em 1916, Liberato descreveu a criação do Campo do Alagadiço, que conforme o documento, perdurou de agosto de 1915 a abril de 1916. A concepção de uma área para concentrar migrantes veio após o acolhimento no Passeio Público, no Centro, exceder os três mil retirantes, registra o documento. 

Legenda: Fac-símile da mensagem enviada pelo governador do Ceará, em 1916, coronel Benjamim Liberato Barroso, à Assembleia Legislativa do Ceará

Apoiado na noção de ordenamento, um terreno no Alagadiço – atual bairro de São Gerardo – foi adotado para a concentração dos retirantes. O local chegou a abrigar cerca de oito mil pessoas. Findado o período de estiagem, em 1916, o campo foi desfeito. 

As imprecisões quanto à localização deste campo perduram. Os registros, embora descrevam as características do local, pouco relatam sobre a exatidão do endereço hoje. A apuração do Diário do Nordeste, com base nos jornais da época e em documentos públicos oficiais, estima que o Campo do Alagadiço existiu em um terreno cedido pelo empresário português João de Pontes Medeiros, na altura do atual do Instituto dos Cegos. 

Continuidade

Apesar das características cruéis, a experiência se repetiria em Fortaleza e se espalharia por outros municípios do Ceará, 17 anos depois. Em 1932, um novo ciclo de estiagem intensa revigorou a ideia de aglomerar retirantes. Outros sete campos de concentração foram criados no Estado. Dois deles em Fortaleza.

Desta vez, a proposta veio da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), ligada ao Ministério de Viação e Obras Públicas. Uma concepção do Governo Federal amparada nas políticas locais. Em abril de 1932 nasceu os campos do Urubu (Pirambu) e o do Matadouro (Otávio Bonfim). 

Os locais situavam-se próximos à via férrea. Também não há consenso sobre a localização precisa dessas áreas. A ausência de vestígios físicos, de algum modo, segue silenciando a existência dos campos. 

A partir do confronto de registros oficiais, matérias de jornais e depoimentos de pesquisadores, a reportagem estima que o Campo do Urubu localizava-se na vizinhança à Rede de Viação Cearense (RVC), espaço que hoje abriga a sede da Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) na Av. Francisco Sá. O campo era estruturado no terreno nas proximidades no sentido do mar. 

O do Otávio Bonfim é um o único em que há um mínimo consenso sobre o endereço. O campo se situava na área ocupada atualmente por prédios como a sede da Regional I, nas proximidades da Igreja do Otávio Bonfim e da Av. José Jatay.

Características 

Os campos eram acampamentos provisórios e por isso, foram imediatamente desfeitos após a desocupação, relata o historiador Fred de Castro Neves. Somente em Senador Pompeu foram aproveitadas instalações de alvenaria dos prédios abandonados pelas empresas inglesas que iriam construir o açude do Patu, conta ele. Isto explica a ausência de vestígios na Capital. 

“Era nessa área que os retirantes ficavam. Eles vinham e eram direcionados para o campo de concentração. Preservar essa memória é lembrar essa condição”, relata o advogado e estudioso do assunto, Valdecy Alves. Morador de Fortaleza, mas natural de Senador Pompeu, Valdecy cresceu envolto pelo imaginário de ter nascido em uma cidade cujo conjunto arquitetônico de ruínas evidenciam o que Fortaleza relegou ao esquecimento: a memória de vidas flageladas e encurraladas. 

Valdecy segue na contramão da maioria e tenta reconstituir a história desses locais. Em novembro de 2018, a inauguração de um monumento – um vagão de trem –, em uma área da Av. José Jatahy, no Otávio Bonfim, deu início a um processo de preservação dessa lembrança. 

A estimativa da Regional I é que no segundo semestre, a Prefeitura deve fixar no local uma placa– espécie de memorial– que fará referência a existência do campo de concentração no endereço. Este será o único local que abrigou uma estrutura do tipo a ter um monumento que referencie este fato histórico na Capital. 

Para a professora do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), Kênia Rios, a ausência de vestígios não se reflete no apagamento da história, mas com a falta de referência “a história passa a ser contada na conveniência dos grupos que interessam”.

Kênia garante ser fundamental o estudo do tema, pois as pesquisas contemporâneas fazem com as pessoas entendam como as relações históricas de desigualdade acontecem. 

A pesquisadora explica que a concepção dos campos de concentração foi uma ideia oficial das elites, acatada pelo Estado. O tombamento de um espaço como o do município de Senador Pompeu, para a professora, é “fundamental porque faz com que as novas gerações entendam o que acontece nas suas vidas no presente. Não é lembrar o passado pelo passado. Mas fazer com que existam esses espaços é entender que essas relações cruéis permanecem. Acontecem de diferentes formas, com matizes diferentes. Mas permanecem com outros nomes”.

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