Ocupação da Sapiranga alerta para desatenção a áreas de preservação

A Justiça cearense determinou a demolição do tradicional restaurante Zé do Mangue e de comércios e casas do entorno pela Prefeitura de Fortaleza, sob argumento de que degradam o meio ambiente protegido por legislação

Escrito por Redação , metro@verdesmares.com.br
Legenda: Clientes se alimentam à beira do Rio Coaçu, na Lagoa da Sapiranga, em região considerada Área de Preservação Permanente
Foto: FOTO: THIAGO GADELHA

José Osmar da Silveira mora ali, tendo o manguezal como varanda e o som da água como despertador, há pelo menos 43 dos 62 anos de vida. Ergueu casa, família e sustento naquele alicerce, e de tão incrustado nas raízes lamacentas do lugar, agregou-lhe à própria identidade – em 1982, abriu o Restaurante “Zé do Mangue”, que se tornaria um dos mais tradicionais da cidade e, atualmente, alvo de ação judicial para demolição.

No último dia 30 de maio, a Justiça do Ceará determinou a remoção do estabelecimento e o reassentamento de quem vive às margens do Rio Coaçu, na Lagoa Sapiranga, Regional VI de Fortaleza. De acordo com a Prefeitura, são cerca de 70 famílias potencialmente afetadas. As construções ficam em Área de Preservação Permanente (APP), de onde deveriam se distanciar, no mínimo, 30 metros. A decisão do juiz Carlos Augusto Gomes Correia, da 7ª Vara da Fazenda Pública, concede prazo de um ano para a Prefeitura “desocupar e limpar o entorno” e indenizar José Osmar, sob multa de R$ 10 mil por dia de descumprimento.

“O Poder Executivo Municipal se esquivou da obrigação de proteger o meio ambiente em área de proteção permanente e ainda não efetuou a disposição de uma política pública para assentar as famílias que estejam residindo indevidamente naquela localidade e do estabelecimento comercial”, conclui a decisão do dia 30 de maio.

Recurso

Assim como o dono do restaurante, a Procuradoria Geral do Município (PGM) recorreu da decisão e nega qualquer responsabilidade da Prefeitura de arcar com custos de demolição e indenização do Zé do Mangue e das demais construções do entorno, argumentando que a fiscalização ambiental não é dever exclusivo municipal, e que o ente não teria condições financeiras para indenizar todos os envolvidos. “Não se pode afirmar que há responsabilidade civil do Município e (...) o dano (ao Zé do Mangue) não pode ser indenizado, levando-se em consideração que se caracteriza como dano justo”.

A ação civil pública foi movida pelo Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE). Argumenta que a Prefeitura foi negligente ao permitir, “por cerca de 30 anos”, que comércios e residências se instalassem na região. De acordo com o MPCE, o Núcleo de Apoio Técnico da Procuradoria-Geral de Justiça do Estado “verificou que o Restaurante Zé do Mangue encontra-se inserido em Zona de Preservação Ambiental, às margens do Rio Coaçu”, bem como outras “ocupações diversas”, “causando danos ambientais”. 

Para o “Zé do Mangue”, a denúncia e a decisão judicial são injustas. “Eu moro aqui há 43 anos e aqui e acolá eles vêm com essa história. A gente não tá poluindo o rio, tá é ajudando a natureza. Não tenho outro meio de vida nem onde morar. Criei meus filhos aqui e agora estou criando os netos. Eu vivo desse negócio. Meu sustento e da minha família ‘veio’ daqui”, ressalta o comerciante. A defesa dele também afirma inexistirem “impactos ambientais qualitativa ou quantitativamente considerados, nem poluição, nem degradação, nem identificação de qualquer dano ambiental”.

A reportagem solicitou entrevista à 1ª Promotoria de Justiça de Meio Ambiente e Planejamento Urbano da Capital, do MPCE, para obter mais detalhes sobre o caso, mas o titular não tinha disponibilidade para concedê-la até o fechamento desta edição.

Danos

Para o professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Jeovah Meireles, “existem problemas seriíssimos de contaminação da água na Lagoa da Sapiranga”, mas a área do restaurante “é de baixíssimo impacto”. “Algumas construções bloqueiam o fluxo da água, como é o caso das mansões do entorno, cujos muros foram construídos quando a lagoa estava mais seca e, agora, quando enche, essas grandes construções entram no ecossistema manguezal”, avalia Jeovah.

O especialista aponta que é urgente “uma política pública consistente e uma fiscalização intensa e contínua” das áreas de preservação permanente de Fortaleza, porque elas impactam diretamente a vida humana na urbe. “São áreas fundamentais, por exemplo, para garantir disponibilidade de água na cidade, controlar microclimas e redirecionar brisas marítimas que eliminam ilhas de calor”, resume.

A necessidade de reordenamento de regiões como a da Sapiranga, porém, deve considerar os aspectos sociais. “A ocupação dessas áreas também advém de um problema social, relacionado à necessidade de moradias para essas populações, já que nosso solo urbano central é mercantilizado. Essas áreas próximas aos rios se tornam mais baratas, mais acessíveis, embora grandes mansões também se instalem”, observa o geógrafo.

O futuro do Zé do Mangue, de casas, comércios e outros estabelecimentos que margeiam o manguezal ainda se emaranha nas incertezas do imbróglio judicial, em que cabem recursos e apelações – mas sobre a forma como o possível processo de reassentamento dos moradores deve acontecer não resta dúvidas. “Um bom reordenamento envolve a participação das pessoas afetadas. O poder público não pode deixar ocupações em áreas de preservação permanente, mas, por outro lado, precisa de uma ação justa, que envolva todo o sistema da Sapiranga”.

Respostas

A reportagem solicitou à Secretaria de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma) e à Procuradoria Geral, ambas municipais, à Secretaria e Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Sema e Semace), mais detalhes sobre o processo envolvendo Zé do Mangue e o entorno da Sapiranga, além de informações sobre como funciona a fiscalização nas APPs, como deve ser feito o reordenamento caso as demolições se concretizem e outros dados relacionados à proteção ambiental em Fortaleza – mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.

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