´O negro não quer ser negro´

Escrito por Redação ,
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Hoje, Dia da Consciência Negra, reportagem aborda a dificuldade de se reconhecer negro no País


“As pesquisas realizadas para quantificar os negros no Brasil podem não ser um retrato da realidade”. Quem afirma é a historiadora Cecília Holanda, coordenadora da ONG Travessia - Centro de Cultura Afro-Cearense. Para ela, levantamentos como o realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) são feitos com base no que os entrevistados declaram, ou seja, quem for negro e afirmar que não o é, assim será contabilizado. “O problema é que grande parte dos negros no Brasil não se reconhece como tal. O negro não quer ser negro, quer ser pardo. Isso porque sabe que ser negro significa no Brasil ser alvo de um preconceito muito grande”, ressalta. “A realidade pode estar mascarada”.

No Ceará, garante Cecília, a situação é ainda mais grave. Ela conta que, até o final dos anos 80, acreditava-se que no Estado não havia negros. “A idéia de que Fortaleza era uma cidade branca foi vendida com muita veemência”, lembra. “Historicamente, a participação do negro na formação da sociedade cearense foi completamente esquecida”.

O reflexo disso, acrescenta Cecília, aparece na quantidade de negros longe das escolas e universidades ou subempregados. “É certo que as políticas públicas devem atingir a todos, mas os negros precisam de um reparo”, diz.

Para ela, esta, antes de ser uma questão meramente racial, tem a ver com cidadania. Por isso, Cecília é a favor de políticas públicas diferenciadas que corrijam esta defasagem. “É preciso conscientizar a sociedade sobre o papel da raça negra”, reitera.

Os números

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a quantidade de pessoas que se declara negra hoje no Brasil representa 6,9% da população total do País. Ao mesmo tempo, 42,6% dos brasileiros se dizem pardos. No Ceará, 2,4% da população se diz negra contra 63,5% que se declara parda. O estudante Adailton Caetano, 18 anos, que vive na comunidade quilombola de Conceição dos Caetanos, em Tururu, diz ter orgulho de ser negro, mas admite ser raridade. “Muita gente tem vergonha”, completa.

De acordo com o chefe da Unidade Estadual do IBGE, Francisco José Moreira Lopes, o método utilizado para o registro da cor feito pelo órgão não contesta as informações repassadas pelos entrevistados, mesmo contrariando as evidências. “Apenas em casos em que, por exemplo, um branco se declara negro, o pesquisador faz uma observação no questionário e um supervisor faz uma reentrevista”, revela. “Mesmo assim, se a pessoa ainda declarar uma cor que não corresponde à realidade, sua posição é respeitada, sem ressalvas”.

Lopes destaca que o IBGE não investiga a raça da população, apenas a cor da pele. Segundo ele, para uma quantificação mais aprofundada e precisa seriam necessários testes sofisticados para verificar as matrizes genéticas das pessoas. “O fato de os negros não assumirem sua cor só demonstra medo do preconceito que permeia a sociedade”, afirma.

Abismo social

As diferenças entre brancos e negros ou pardos aparecem quando são levados em conta quesitos como o rendimento-hora do trabalho ou a escolaridade. A média brasileira é de R$ 7,30 para brancos e R$ 3,90 para negros e pardos. No Ceará, os brancos ganham, em média, R$ 4,30 por hora de trabalho e os negros e pardos, R$ 2,70.

As taxas de analfabetismo ajudam a aumentar o abismo existente entre brancos e negros. Se for levada em conta a população branca brasileira com 15 anos ou mais, o índice de pessoas que não sabem ler nem escrever chega a 16,4%. Entre os negros na mesma faixa etária, a proporção é de 27,5% de analfabetos. No Ceará, 28% dos brancos com 15 anos ou mais são analfabetos, o percentual sobre para 37,5% entre os negros.

INVISIBILIDADE HISTÓRICA

Movimentos ajudam a manter cultura viva

Para o professor Eurípedes Funes, do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), a invisibilidade do negro, no Ceará, se deve a uma construção de cearensidade que não dá espaço para etnias que sejam descendentes dos escravos. A culpa, explica, é da reprodução do discurso em torno da abolição dos escravos. “E o espaço que este negro ganhou? Feita a abolição da escravatura na Terra da Luz, apagaram-se as luzes sobre o negro”, declara ele. “A partir da República, o negro foi completamente silenciado e passou a viver excluído socialmente, marginalizado, sem as mesmas oportunidades dos brancos”.

Eurípedes ressalta, contudo, que a negação da presença negra no Estado é descabida. “O preconceito existe e sempre vai existir, mas lembro que, no início dos anos 80, quando comecei a estudar o negro no Ceará, as pessoas perguntava como iria pesquisar uma coisa que não existe”, conta. “Hoje, esta mentalidade mudou graças à difusão de práticas sociais e culturais e também à força do movimento negro. Os negros encontraram estratégias de resistência e agora emergem”.

Porém, de acordo com o militante e pesquisador da cultura negra no Ceará, Hilário Ferreira, o movimento negro no Estado precisa ganhar força política para avançar em suas conquistas. Neste sentido, ele acredita que as novas gerações devem conhecer melhor a história do negro e também do próprio movimento. “É preciso ser dono da história, seu protagonista, e não se deixar ser engolido por ela”, declara. “O que eu vejo hoje são os movimentos cometendo os mesmos erros de quando os primeiros grupos organizados surgiram”.

MISSA AFRO

Ações culturais fortalecem a negritude


Ao invés de louvores católicos, hinos com matrizes africanas executados com muito ritmo e instrumentos de percussão e devidamente acompanhados por grupos de dança com roupas coloridas. No lugar das tradicionais oferendas, cestos de frutas. O padre está lá e é negro. Assim é a missa afro, promovida há 21 anos pela Pastoral Afro da Paróquia Santo Antônio de Pádua, no bairro Jardim Iracema.

A cerimônia, cuja última edição aconteceu no domingo passado, marca as comemorações pelo Dia da Consciência Negra e costuma reunir centenas de fiéis, que não se importam com o sincretismo da celebração - outra missa acontece hoje, em Tururu. De acordo com a teóloga Lúcia Simão, coordenadora da Pastoral Afro, a iniciativa tem como objetivo principal construir uma mentalidade plural em torno da importância do papel do negro na sociedade, valorizando sua cultura. “Quando celebramos a missa afro, relembramos os nossos irmãos que não puderam exercitar sua religião”, ressalta.

Lúcia é descendente de negros quilombolas. Os pais, primos legítimos – casamentos entre parentes eram comuns nos quilombos –, nasceram na comunidade de Lagoa do Ramo, em Aquiraz. Há 50 anos eles decidiram deixar o trabalho na lavoura e tentar a vida em Fortaleza. O bairro escolhido foi o Jardim Iracema, um dos berços do movimento negro na Capital e foco de resistência da cultura afro no Ceará. A teóloga lembra que o desejo de militar pela causa negra surgiu logo depois de uma temporada no convento das Irmanzinhas de Jesus, no Rio de Janeiro. “O preconceito pelo fato de eu ser negra era muito grande lá”.

De volta ao Ceará, no final dos anos 70, Lúcia decidiu iniciar o embrião do que hoje é a Associação Cultural Afro-Brasileira Maracatu Nação Iracema, fundada há cinco anos. Naquela época, as reuniões eram freqüentadas por não mais do que cinco pessoas, incluindo a própria Lúcia, sua mãe e uma irmã. Os encontros giravam somente em torno de discussões sobre casos de discriminação vivenciados pelos participantes. Os associados foram sendo arregimentados na rua. Era Lúcia quem convidava os negros a integrar o grupo.

Atualmente, a entidade tem projetos de difusão da cultura negra e conta com um bloco carnavalesco que desfila todos os anos na avenida Domingos Olímpio. Cursos profissionalizantes, como de fabricação de instrumentos musicais e corte e costura, também são realizados periodicamente, voltados não apenas para os negros do Jardim Iracema e vizinhança, mas também para a população carente da região. “Todas as pessoas envolvidas recebem aulas sobre a história da África e são estimuladas a se assumirem negras. É muito comum vermos negros com vergonha da cor e se dizendo bronzeados. Não pode”, declara. “A auto-estima é o que mais trabalhamos aqui. Muitos negros se deixam discriminar por não conhecerem seus direitos. Ter consciência negra é, antes que qualquer coisa, se perceber negro”.

Filipe Palácio
Repórter


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