O Carnaval de rua me fez sentir parte de Fortaleza

Foi em um domingo na Gentilândia, depois de circular pelos paredões de som da Taíba, que entendi de vez que não é qualquer fuzuê que faz bater o meu coração

Escrito por Lorena Cardoso , lorena.cardoso@svm.com.br

Moro há pouco mais de doze anos na Capital e vivi os últimos onze ciclos carnavalescos no meio dos blocos, colecionando lugares preferidos, descobrindo a cidade e a mim ao mesmo tempo. Transitar pelas vias em ritmo de folia, aos poucos, me integrou ao espaço coletivo e trouxe identificação com o lugar que vim morar de uma forma que a rotina de casa, estudos e saídas para espaços privados não foi capaz de promover.

Percorrer a cidade em cortejo, frequentar pontos históricos, dividir memórias, repertórios e experiências urbanas com outros foliões me fizeram olhar para Fortaleza de forma diferente. Despertaram a sensação de pertencimento e ajudaram a enxergar melhor a Fortaleza com seus artistas, paisagens, bares, patrimônio arquitetônico, desigualdades e descasos. O Benfica, a Rua dos Tabajaras, a Travessa Crato, a Praça dos Leões, o Mercado dos Pinhões, a Praça do Ferreira, a Rua João Cordeiro, o Poço da Draga e o Dragão do Mar, que são alguns dos pontos que na última década se solidificaram como espaços de folia, passaram a ser lugares das minhas histórias.

Foi em um domingo na Gentilândia, depois de circular pelos paredões de som da Taíba, que entendi de vez que não é qualquer fuzuê que faz bater o meu coração carnavalesco. Pela Lagarta de Fogo, sob o sol escaldante sempre firme no Sanatório Geral, fui apresentada às ruas do Benfica. Os meninos de vermelho e amarelo, entretanto, é que me fizeram frequentar religiosamente o bairro toda sexta-feira de Pré-Carnaval. Do repertório do Luxo da Aldeia eu não sabia quase nada, mas os arranjos do cordão transformaram minha ignorância sobre a música feita aqui em uma relação muito afetiva, principalmente, com a obra de Fausto Nilo, Ednardo, Evaldo Gouveia e do Maracatu Solar.

Quando o único lugar possível de ficar na "rua do Seu Chaguinha" e saracotear em "Carneiro" ou "Pra Tirar Coco" era atrás do palco, colada na grade, fui apresentada ao Mercado dos Pinhões. O grupo dos empolgados em transformar os quatro dias de folia em quatro semanas tinha crescido, pedia mais espaço. A nova área ocupada pelo Carnaval abria um percurso possível de ser percorrido a pé pelos "inimigos do fim". Mocinha, Estoril, Mambembe, Flórida, Motolibre viraram rotas tantas vezes percorridas em grupos de conhecidos e desconhecidos driblando, inclusive, a frequente sensação de insegurança que faz com que os pertences estejam sempre escondidos na doleira.

Nessas andanças na última década, vi de perto um bloco de mulheres se formar em protesto aos espaços destinados a elas nas baterias e conseguir adesão dos foliões. Com talento e disposição, As Damas Cortejam ganharam a rua com pautas que vão além do Carnaval e, já no segundo ano, fizeram a festa com o financiamento coletivo. Engajamento que outros cordões também vêm conquistando por meio de bandeiras de diversidade, crítica social, identidade musical e reforço da cultura local, como vi em As Travestidas, no Cola Velcro, no sarcástico Carnaval do Inferno, no belíssimo Iracema Bode Beat e no eclético Pra Quem Gosta É Bom.

Essa empolgação com o que é produzido nesse período me fez comemorar o primeiro disco gravado pelo Luxo da Aldeia, que chegou a Praça do Ferreira e agora está no Spotify na categoria artista, assim como a mudança do Chão da Praça para um espaço que acomode público conquistado pelos Transacionais nos últimos anos. Como nem só de alegrias se faz um Carnaval, o fim do Sanatório Geral, ainda não superado, deixou lacuna nos dias de festa no Benfica.

O fluxo, me parece, é que nesse "renascer" da folia de rua de Fortaleza cada iniciativa constrói sua história sempre atrelada a um contexto maior, da cidade, com os diversos desafios desse cenário: segurança pública, ocupação urbana, políticas de incentivo às artes e manifestações. O que esse coração de foliã alencarina espera é que Fortaleza se encontre melhor nesses desafios todos e que as pessoas não deixem morrer esse espírito pulsante.

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