“Nunca vi o mar”

Escrito por Melquíades Júnior , melquiades.junior@svm.com.br
Foto: Foto: Melquíades Júnior

Sexta-feira,“do outro lado da cidade”:

— E aí, mulher. Fazer o quê no fim de semana? Só “charlar”?

— Lavar. Lavar roupa suja.

— E domingo?

Olha para a amiga “perguntadeira” como quem responde ou rejeita a pergunta. E acrescenta:

— Tu pensa que eu tenho tempo ,é? Foi-se o tempo. Domingo que é corrido, já emenda com a segunda-feira.

— Mulher, tu precisa é de um tempo pra você.  

— E quem paga as contas? Já viu pobre ter tempo? E tem: quem vive às custas dos outros. Só quer ser rico. Porque rico diz que não tem tempo, mas tem dinheiro, então consegue inventar tempo.

— Pois eu sou a liseira em pessoa, mas é só arrumar uma brechinha no fim de semana, que corro pra fazer as unhas e vou dar uma volta. Minha patroa diz,“mas vixe, Ana passa o dia pegando nos produtos de limpeza e tá sempre com a unha mais feita que a minha”. Aí olha pras dela. Eu rio por dentro e fico calada, mas a vontade é dizer “e só a senhora pode ser bonita, bonitona?”

— Pois já me arrumei muito. Agora, não cabe mais nada.

— Vamo arrumar um dia pra ir pra praia. Pra ‘PF’, como o povo diz. Vai eu e você.

— Nunca.

— Mulher, o que foi que eu tefiz?

— Nunca fui pra praia. Só vejo o mar da televisão.

— Tu tá falando sério? A pessoa mora em Fortaleza e não conhece a praia.

— Até parece. Essa Fortaleza aí é outra. Não é de todo mundo, é o que vendem pra fora. Num faço tanta questão. Tá certo, parece muito bonito. Mas ir pra não ter dinheiro pra comer? E daqui que eu chegue no terminal do Papicu e pegue um ônibus pra lá já passa umas três horas. E ainda tem a volta. Que adianta?

— Mulher, que bicho te mordeu?

Depois de uma pausa maior que as outras:

— Pois eu tô é atrás que um bicho me morda todinha..

As duas caem na gargalhada. Suspendem o ato, porque o ônibus está cheio de ouvidos. Tantos quantos cabem num ônibus em que não cabe mais ninguém. A essa altura deparadas, Ana já esqueceu a cara amarrada e dá sequência:

— Quando eu tinha mais ou menos a sua idade, até pensava em ir pra praia. Botar um fio dental e entrar no mar fingindo que os homem não tão me vendo, só deixando babar. Pensa o quê? Já fui cocota... Mas um dia desses eu até pensei: vou morrer sem ver o mar?

— Mulher, se tu vê, hoje em dia o povo não liga. As mulher toma banho de todo jeito. Bora! A gente sai cedo e na volta racha um Uber. Ainda tô pensando como é que uma pessoa nunca viu o mar...

— Ah, mas tem tanta gente que nem eu. É porque o povo não diz. Tá certo que a pessoa querendo dá um jeito, mas pro pobre, Ana,tudo é mais difícil. Outro dia a polícia bateu num sobrinho meu que tava na praia dos “crosto”. Como é que diz?

— “Crâsh”.

— Nessadaí. Ele disse “tia, a gente não tava fazendo nada. Agora tinha um pessoal mais vistoso perto da gente e um metido a playboy foi beijar a menina sem ela querer. Foram chamar a Polícia. Vieram foi tacar o cacete na gente, que não tinha nada a ver, e botaram a gente pra correr”. Aí me diga, mulher, como é que dá vontade de ir pro canto que tratam preto e pobre desse jeito?

— Pois aí que a gente tem que ir mesmo. Mar menino, quero é ver mexer comigo. Praia não tem dono. Pois vou te carregar pra praia nem que não queira.

— Eu quero. Mas não tenho maiô.

— Vamo dar um jeito. Agora você não dê pra trás.

— Mulher, olhe o palavreado, o que o povo aqui vai pensar?

— Agora pronto. Pois pensem... Mulher, tu se preocupa demais. Você vai ver como vai ser bom o banho de mar. É outra vida.

— Então tá. Aí já posso morrer...

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