Nosso outro tempo

Escrito por Diego Barbosa , metro@svm.com.br
Legenda: Qual estrada estranha o garoto das amoras atravessa neste momento?
Foto: Foto: Natinho Rodrigues

Eu era daqueles garotos minguados que vivia a surrupiar as amoras do vizinho. Geralmente acontecia aos domingos. Depois que papai alimentava as galinhas no terreiro e mamãe chegava das compras no armazém da esquina, tratava de sair das barracas de lençol no quarto e corria até o muro. Ali, o vento fustigava a cabeleira encaracolada e levantava o fiapinho de calção azul-desbotado. Ali, com olhos fechados e punho em riste, arriscava manobras inteiras para caçar aquelas coisinhas meio pretas, meio roxas.

Era feliz. Tinha a cidade presa nas mãos, um meigo gosto das pequenas coisas que acontecem em instantes de quase-hora e que quase ninguém sabe, quase ninguém vê. A quinta maior metrópole do País - saberia depois - anunciada aos quatro cantos por entre papéis surrados de jornais e ecrãs poluídos pela fuligem das avenidas, parecia pequena demais diante de minhas miudezas. Imaginava-me minúsculo gigante. E nada abalava aquela curiosidade de guri esfomeado pelo viver o mundo.

Talvez todas essas vivências guardadas na dobra do sorriso e do tempo tenham me feito ciente que as pessoas poderiam fazer o mesmo quando crescessem e acordassem para a sua completa pequenez adulta. Talvez sair da perifa onde moram e chegar até à praia dos bacanas. Ou desembestar na bicicleta por entre a Expedicionários, em direção ao Aeroporto, para dali alçar voo sobre duas rodas. Ou passar pela Domingos Olímpio na trinca final de meses do ano só para contemplar a "iperêiada" toda dando ar da graça em amarelo. Coisas miudinhas, bem simples mesmo.

Quão grande foi minha surpresa quando, nesta semana, percebi que eu mesmo não fiz nada disso no 2019 já de partida. Que não atravessei a cidade como queria, manhãzinha ainda, no desabrochar do sol. Que cheguei logo em casa por motivo de não me permitir ver o céu mais de perto, com a lupa da saudade. Que neguei a liberdade de zarpar pelos túneis verdes do Cocó apenas para sentir o cheiro de mata. Cheiro meu.

Onde está aquele outro tempo de agora? Qual estrada estranha o garoto das amoras atravessa neste momento para deixar que a mesma urbe-consolo de outrora tenha se tornado, sob sua retina, urbe-garganta, feito nó feio no meio do pescoço? Onde? Longe?

Dia desses, nesta semana de verdades cruéis, um garotinho me respondeu. Balde cheio, cuia na mão, tinha uma das calçadas do Montese como palco para uma inusitada apresentação. Deleitava-se a sentir o vento de fim de tarde e banhava as plantas, a grama, a si. Nem sentia o fluxo insone dos veículos. A fortaleza dele era ter o castelo das fantasias aberto para o novo e o bonito. Bastava pôr o objeto a mão e deixar a água penetrar os cabelos.

Só de olhar ao longe, na brecha do ônibus, quis ser menino de novo. Quis olhar para dezembro e lhe dizer que ainda é tempo de fazer o hoje antes de quaisquer réveillons. Quis prometer à Fortaleza minha encarar-lhe de frente, feito encarava as amoras do jardim do vizinho, e contorná-la de norte a sul, para desaprender a deixar-lhe correr solta na palma da mão. As minhas mãos, aquelas que seguravam as doces amoras onde residiam, inquietos, meus desejos de lonjura.

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