Mucuripe de som, luz e afeto

Escrito por Lígia Costa , ligia.barbosa@svm.com.br
Foto: FOTO: J L ROSA

As velas do Mucuripe vão sair para pescar... É inevitável - pelo menos para mim - ler esta frase e não lembrar imediatamente da forma em que ela costuma se apresentar mais bonita: de música, esta que lhe (re)veste de vida e sentimento. 

E emendar até um arremedo de canto, seguindo na vitrola da cuca a voz sentida do conterrâneo Raimundo Fagner, com seus olhinhos miúdos “de saudade”, já parafraseando “Canteiros”, outro sucesso do artista. 

Como pano de fundo do pensamento, ainda me vem uma das mais belas paisagens da minha, da nossa Fortaleza, a Praia do Mucuripe.

Com jeito de quem conhece de perto o que canta, o sotaque do músico cearense também compositor vai, por tabela, atravessando em várias notas as muitas fases do meu caminhar na cidade, onde o destino me predestinou e finquei raízes. A vida passa em flashes, enquanto a música toca na cabeça. 

Em um só tempo, Mucuripe é trilha sonora e lugar. É porto por onde entra e sai carga pesada. Ponto de partida para passeios de barco no verde mar. Altar onde deixam oferendas à Rainha do Mar, Iemanjá. Destino de andanças risonhas e descabeladas. Canto estratégico para ver o sol ir embora bonito, enquanto a cerveja gelada refresca o calor que fica. 

É farol erguido por escravos que guiou a história naval da cidade, de onde hoje meninos do bairro avistam o pedaço de chão onde vivem. É espaço de lazer do dia a dia, onde gasguitam correndo atrás de pipa, em frenesi pra mantê-las flanando lá em cimão, colorindo ainda mais o céu muito azul e iluminado. 

É afeto. “Sem ter medo da saudade”, arrasta pra rede das memória parentes e amigos, fazendo brotar no rosto um “sorriso ingênuo e franco”. 

É terapia. Das tristezas e aporrinhações da vida, oferece suas águas fundas pra onde “levar mágoas”. E por lá, quem sabe, esquecê-las. 

É movimento. No ir e vir da ondas, ora raivosas, ora calmas, mas sempre incansáveis, incessantes. No cruzar de vidas, que se cortam e entrelaçam. Na partida e chegada diária dos pescadores com suas caças, independentemente do rendimento da pescaria.  

É cheiro misturado correndo no ar. De maresia, tempero, perfume, fritura de camarão pequeno a peixe grande. 

É desprendimento, na figura do pescador que vai à luta, atrás do sustento, sem saber se irá voltar, se lançando no oceano como quem namora “sem ter medo da saudade e sem vontade de casar”.

Ainda é surpresa. Em especial pro olhar despreparado. Tal como uma revoada de pássaros que cumpre o ritual barulhento e sincronizado ao se recolher no fim da tarde, os barquinhos e jangadas se amontoam no trecho da praia, até perder de vista. Se embalançam em bando, alumiadas pelos últimos raios do dia.

Tal como a flor no campo transformada, de um mês pro outro, em paletó de linho branco, minha Fortaleza se reinventa. Muda de velas, de ritmos, ganha e perde moradores, substitui as vilas por prédios altos, vendinhas por (super)mercados. Indo na contramaré da canção, peço: vida, vento e vela, não levem-me daqui. 

https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/verso/aos-70-anos-o-cantor-fagner-partilha-orgulhos-arrependimentos-e-novos-sonhos-1.2160660


 

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