Metades desiguais

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Legenda: Fortaleza é o retrato de várias cidades. Uma rica, outra miserável. Uma alta, de onde a chuva escorre; outra baixa, onde a água inunda
Foto: Helosa Araújo

A foto era assim: em primeiro plano, montes de areia avermelhada cercando casinhas de tijolo cru. Encostado numa cerca, miúdo, um homem e o cavalo miram o fotógrafo de longe, se eternizam na imagem como pontinhos distantes, sem querer. Mais atrás, em segundo plano, emerge o pedacinho de um mar azul-petróleo, seguido pelo horizonte cortado por edifícios e edifícios e edifícios. É bater o olho e enxergar o retrato de uma Fortaleza partida ao meio pela desigualdade.

Não conheço o autor do clique, nem lembro de quando esbarrei com a imagem, nas redes sociais, mas o embrulhar de estômago ao mirá-la é quase palpável, até hoje. Andar de uma ponta a outra dessa nossa Capital, principalmente com um olhar crítico incapaz de desligar, é percorrer várias cidades em uma só. Uma rica, outra miserável. Uma alta, de onde a chuva escorre; outra baixa, onde a água inunda. E todas inquietam.

Daqui de cima, dos meus privilégios - e provavelmente dos seus, que me lê -, os edifícios que cobram muito além de um salário mínimo pra cada família que os ocupa parecem até mais baixos. Dá até pra ver as samambaias se enroscando nas telas de proteção, a rede armada na varanda, as gotas que pingam da caixa do ar-condicionado. A televisão gigante sintonizada nos canais fechados. A descrição pode parecer um estereótipo reproduzido nestas linhas, mas é só um padrão que se mostra a qualquer olho nu que queira enxergar.

Mesmo antes de ser jornalista, eu já observava que nas regiões ricas, Aldeota-Meireles-Cocó-Dionísio, os grandes prédios sufocam o mar, se enfileiram, cheios de si e dos iguais ao redor - e que na periferia, são espigões verticais isolados, fortes vestidos com cercas elétricas, onde se adentra e se sai de vidros fechados, verdadeiros carros-fortes. São gigantes que destoam.

A diferença é que, agora, não só olho, percorro essas tantas cidades dentro da minha. Num dia, tô num hotel entrevistando o prefeito, com uma mesa de frios e sucos finos ao lado. Ou mesmo hospedada em uma cidade vizinha, aproveitando o farto café da manhã na folga do fim de semana. No outro, meus pés tentam desviar da lama numa casa que não tem chão, dissolvido pela água da fossa - TV quebrou, geladeira queimou, água tá faltando porque a Cagece não perdoa inadimplência, não. Mas se não tem dinheiro nem pro almoço, vai sobrar pra garantir a ligação?

Aqui, nessa quinta capital mais habitada do Brasil, paraíso tropical de muitos, só atinge o nível do mar quem pode, não quem quer. Exceto ali no Poço da Draga, comunidade violentada todo dia pela negligência. Ou no Titanzinho, que resiste no surfe e sorri pro mar imenso cujo quebrar das ondas embala o sono e a economia. Fora isso, tem (muita) gente ali pelas bandas do Álvaro Weyne que não tem sequer o dinheiro da meia-passagem pra dar um mergulho nos Crush. Se quiser, pode ir a pé à Praia da Leste - quase toda semana imprópria pro banho.

Em níveis maiores ou menores, afinal, toda cidade grande tem isso de se dividir. Tem gente morando em mansão, enquanto outras, na rua. Tem quem, no conforto da sala de luxo ao lado da Praça Portugal, ache caro doar três latas de leite em troca do ingresso de um show; enquanto duas crianças e a mãe estendem a mão, ali, naquela mesma praça, suplicando por alguma moeda que dê pro pão. Tem quem vá ao trabalho de carro, de moto, e receba mais de 90% do que os brasileiros ganham, em média, no fim do mês - e tem quem precise cruzar a cidade inteira de ônibus lotado ou bicicleta pra ganhar, com sorte, um salário mínimo.

Em todo lugar, nesse Brasil de abismos, a desigualdade grita na cara da gente, até de quem prefere não ouvir. Em toda Capital, casinhas de tijolo cru poderiam dividir espaço na fotografia com um horizonte cortado por edifícios e edifícios e edifícios. Em quase toda cidade grande, é só sair da bolha e bater o olho pra enxergar a linha que lhe rasga em metades desiguais. Mas quando é Fortaleza, dói mais.

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