Mergulho pra respirar

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@diariodonordeste.com.br
Legenda: Pés sobre a Ponte Velha, olhar sobre o nosso infinito particular
Foto: Foto: Fernanda Siebra

Era como morrer para renascer - eu mergulhava pra respirar.

Era no balanço-ninar de onda que pesa e é leve, ao mesmo tempo, que eu me reencontrava comigo, nos fins de tarde, em pleno dia útil, depois do trabalho. Não consigo contar as vezes em que os dois mares que eu carregava nos olhos desaguavam no de Iracema, sem pudor, sem reservas - ambos refletidos por aquela luz que antecede o pôr do sol e realça o dourado das coisas. O peito, dentro do mar, era represa à beira de arrebentar.

Coisa demais se juntava ali - muita correria e pouco fôlego, muitos pulos necessários e pernas curtas demais para alcançá-los. Muito a sentir, tanto a dizer, nada a falar. E, então, o mar se fazia ouvinte e confidente. No íntimo, confesso, era uma relação de posse, a nossa. Ele às vezes não queria me devolver à superfície, enquanto eu queria sempre acreditar que a onda que leva e traz, bate e acarinha, tensiona e relaxa era só minha. Que só eu corria pros braços do mar pra retomar o ar, ninguém mais, nenhuma daquelas dezenas de pessoas que pareciam hipnotizadas e, ao mesmo tempo, desconsertadas com o absurdo desse azul-verde misterioso que maquia o fundo do Atlântico na Praia de Iracema.

Ter o oceano como terapeuta é privilégio pelo qual o fortalezense precisa ser grato todo dia. Todo dia. E nem falo só de quem desembolsou milhões para comprar - ou milhares para alugar - uma varanda de frente à Beira-Mar, tendo o barulho violento e tão bonito (que contraditório é o mar e a gente!) das ondas como despertador. Nem falo só dos surfistas, pescadores e crias do Titanzinho, na periferia de Fortaleza, que suprem as inúmeras faltas com o infinito só deles guardado no quintal.

Falo também de quem pode sair do trabalho ou de casa ou de uma discussão, uma briga - com outro ou consigo -, e dar um pulo ali na Ponte Velha do Poço da Draga. Assistir à ousadia dos corpos que se lançam num quase-abismo à água. Ver as ruínas vestidas de corais serem violentadas pela força das ondas. Contemplar e guardar na memória e na fotografia a imponência enferrujada do Mara Hope, teimosia de quem rompeu amarras, se fixou na fortaleza que escolheu pra si, e bate o pé, mas não sucumbe. Não afunda. Não some. De quem se transformou num sentimento - e resiste num gesto de memória.

Foi junto do Mara, aliás, que eu vi o momento-lugar em que a cor do mundo se pinta. As ondas quebrando antes da praia, meio tortas, enviesadas uma na outra, se chocando como que empurradas por ventos distintos, em direções também diferentes. Meio briga, meio abraço. E, do esbarrão, nascia um arco-íris - tão a cara de montanha e serra, mas tão confortável ao resolver abraçar areia e sal. Era ali.

Ainda hoje, depois de três quase-afogamentos, é uma relação estranha, essa nossa, minha e do mar. De medo e refúgio, de alívio e tensão, de mágoa e amor. De desconfiança e desespero, quando não dá pé, e de entrega quando a massa d'água salgada faz vezes de colchão e lençol - textura macia e abraço morno sussurrando que, afinal, vai ficar tudo bem. Que o mundo é grande demais, as pessoas podem ser boas demais e o amor tem força demais para que só a tristeza e a ansiedade nos vençam.

É por isso que hoje, apesar de nem tanto, ainda é como morrer pra renascer - eu tampo o nariz com uma das mãos, submerjo corpo e mente e esqueço de mim em segundos infinitos de apneia. Fecho os olhos, inflo o peito e mergulho. Mergulho pra respirar.

Os destaques das últimas 24h resumidos em até 8 minutos de leitura.