Mais de 100 transexuais usam nome social em escolas do CE em 2019

Direito de estudantes transgêneros no ensino básico brasileiro foi regulamentado em 2018, quando quase 90 cearenses incluíram a identificação no sistema; garantir ambiente escolar saudável ainda é desafio

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Legenda: Respeitada por amigos, Lindsay Vasconcelos revela que teve o apoio da coordenação da escola
Foto: FOTO: CAMILA LIMA

Existir requer coragem. Ser quem se é, ainda mais. Os dois verbos se tornam imperativos no processo de autodescoberta de transexuais e travestis, e podem se traduzir em atos relativamente simples, como cortar o cabelo, ou de simbologia imensa: como escolher um novo nome. Na rede estadual de ensino, o número de matrículas com inclusão do nome social dos estudantes transgêneros subiu de 89, no ano passado, para 113, neste ano - aumento numérico tímido de 26%, mas de importância expressiva para os que lutam por autoafirmação.

O uso do nome social em instituições de ensino básico, profissional e superior do sistema estadual do Ceará é garantido desde agosto de 2017 pela Resolução nº 0463, do Conselho Estadual de Educação, segundo a qual a identificação de pessoas trans deve preceder o nome civil em declarações, certidões, históricos escolares, certificados e diplomas. A medida só foi expandida para todo o País em janeiro de 2018, quando o Ministério da Educação (MEC) homologou resolução própria.

Desde que o campo "nome social" entrou no sistema da rede de ensino básico cearense, foram registradas 202 matrículas contendo a informação. Só neste ano, 74 meninas e 39 meninos transexuais tiveram o nome social garantido nos registros escolares, de acordo com a Secretaria da Educação (Seduc). Mas, para alguns, o processo é mais complicado do que cruzar a burocracia: é cultural.

Taylor Gabriel, 17, busca a legitimação da própria identidade diariamente, ao corrigir colegas e professores que insistem em chamá-lo pelo nome civil. O adolescente estuda em uma escola estadual em Mucambo, na Região Metropolitana de Sobral, e chegou a ter medo de retornar às aulas, após as férias, quando cortou o cabelo e decidiu assumir a identidade masculina. "Tive que enfrentar isso. Antes, eu não era bem tratado, agora está melhorando. Mas poucos professores me chamam de Gabriel, me sinto desconfortável com isso", revela.

Conquistas

Foi pelo extremo do desconforto, porém, que a estudante Alexia Andrade, 17, se descobriu uma menina trans. "Um menino gritou comigo no feminino, no 9º ano do fundamental. Nesse momento, senti uma diferença em mim, gostei de ser vista como mulher. Me senti confusa, procurei psicólogo e, no 1º ano do ensino médio, comecei a fazer a mudança. Já no 2º, comecei a burocracia do nome", relembra a estudante, hoje no 3º ano.

O respeito de colegas e professores veio de forma natural, mas o conforto real apareceu na lista de chamada. "Ver meu nome ali foi reconfortante. Não precisar mais ir até o professor e lembrar a ele que chamasse 'Alexia', e não outro nome. Uma vez, um professor chegou a chamar o nome de antes por três vezes, e não respondi", rememora. Na quarta, corrigido por uma amiga, ele registrou a presença em sala de Alexia.

Outro obstáculo do processo de transição à comunidade escolar foi o uso do banheiro feminino. "Passei o 2º ano inteiro tentando fazer eles entenderem que aquilo não era uma coisa negociável, era uma necessidade minha e eu não ia desistir. Eu poderia ter aceitado, baixado a cabeça, mas não fiz. Até o banheiro é lugar de convívio social, eu precisava ter acesso", sentencia a estudante, que, hoje, se considera "privilegiada" por viver "em paz" na instituição.

O processo, felizmente, tem sido o oposto para a estudante Lindsay de Vasconcelos, 18, matriculada em uma escola estadual de Fortaleza. Ela cursa o 3º ano do ensino médio e se orgulha por ser "a primeira pessoa trans a concluir os estudos" na instituição. "Antes mesmo da transição, as pessoas sempre me respeitaram como menino gay. Meus amigos às vezes erram, mas se corrigem. Agora, me respeitam com o nome Lindsay. Me respeitam como ser humano".

No ambiente escolar, o respeito que Lindsay sente segurança por receber vem também pela via institucional, segundo ela. "Tive uma conversa com a coordenação da escola, que super me acolheu e se prontificou a fazer um momento em sala, para explicar às pessoas que eu sou uma mulher trans, explicar a diferença entre sexualidade e gênero. Consegui levar a Dediane Souza (coordenadora executiva da Pasta Especial da Diversidade Sexual de Fortaleza), porque ela saberia explicar melhor", relembra.

O caso dela, aliás, transcende o uso do nome social: Lindsay já teve o registro civil retificado, adequando nome e identidade ao gênero com o qual se identifica. Restam, agora, os outros documentos. "Hoje, ouvir as pessoas me chamando pelo que eu sou é incrível. Vou ser a primeira mulher trans a completar os estudos na minha escola, e isso pra mim é maravilhoso. Porque as pessoas trans e travestis às vezes não chegam nem ao ensino médio", ressalta.

Evasão

A evasão escolar entre estudantes LGBTI+, sobretudo transgêneros, é uma das principais deficiências do sistema público de ensino, como aponta Homero Henrique, assessor pedagógico da Equipe de Educação, Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade da Seduc. "Nosso foco é garantir que esses estudantes permaneçam na escola, e com um espaço favorável ao aprendizado. Além do nome social, um desafio grande é garantir o uso dos banheiros. É uma demanda que recebemos deles e das próprias escolas", reconhece.

A questão, então, ultrapassa os limites legais ou burocráticos e requer uma mudança de comportamento, a fim de bloquear a passagem de preconceitos e discriminações para dentro dos muros da escola - bem como trabalhar, de dentro para fora, para mitigá-los na sociedade. "Orientamos sempre que as escolas ampliem a discussão para a comunidade, para desmistificar o senso comum que ainda trata essas questões LGBTI+ muito no campo dos achismos e dos tabus. A ideia é que cada escola entenda seu espaço como de discussão, reflexão e respeito à diversidade", frisa.

A reportagem solicitou à Secretaria de Educação de Fortaleza (SME) o número de estudantes que utilizam o nome social em escolas municipais da Capital, mas a Pasta informou, em nota, que "não há registro", apesar de "o direito ser garantido". 

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