Mais de 1,1 mil buscaram Justiça para acesso à saúde na Capital em 2019

Judicialização é saída para muitos cearenses na busca por medicamentos, vagas em leitos e tratamentos de alta complexidade; só na Defensoria Pública do Estado, foram mais de 15 mil atendimentos entre 2017 e fevereiro deste ano

Escrito por Theyse Viana , theyse.Viana@diariodonordeste.Com.Br
Legenda: Demanda por leitos de UTI lidera processos judiciais abertos por meio da Defensoria Pública
Foto: Elizângela Santos

A vida de Antônio Dionísio foi de espera até o dia em que não pôde esperar mais. Da fila do transplante de fígado foi direto à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do bairro Autran Nunes, onde ficou internado por sete dias esperando por um leito de terapia intensiva em qualquer um dos hospitais públicos que pudesse recebê-lo. Não houve vaga. Nem tempo. Entre a liminar judicial que obrigou o Estado a garantir a transferência e o surgimento do leito foram três dias - os últimos dos 62 anos do pai da auxiliar administrativa Maria Claudiana, 39.

"Os próprios enfermeiros diziam: 'seu pai não é pra estar aqui, é pra estar em outro lugar'. Ele morreu com muita vontade de viver, por falta de cuidado", desabafa a filha, uma das 1.181 pessoas atendidas até fevereiro deste ano pelo Núcleo de Defesa da Saúde (Nudesa) da Defensoria Pública Geral do Estado na busca por medicamentos, vagas em leitos de UTI e tratamentos de alta complexidade em Fortaleza. Em 2017, foram mais de 6,2 mil atendimentos em Fortaleza, número que saltou para 7,6 mil no ano passado.

Estava voltando do cemitério e me ligaram. Respondi que a vaga que ele precisava agora era no céu
- Maria Claudiana, filha de Antônio Dionísio

Questionada sobre o que ocasionou o não cumprimento imediato da liminar relacionada a Antônio Dionísio e se existe um prazo razoável para demandas do gênero, a Secretaria Estadual da Saúde (Sesa) não respondeu até o fechamento desta matéria.

De acordo com a defensora pública do Nudesa, Karinne Matos, cerca de 90% dos casos que chegam ao local são relacionados à saúde pública, sendo as solicitações de leitos, pedidos de exames, terapias, alimentação especial e até fraldas os "carros-chefes" da demanda diária. Casos mais complexos, segundo ela, se referem à obtenção de "medicações mais caras, não disponibilizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas que a Sesa precisa disponibilizar, por serem para tratamento oncológico ou de doenças raras."

Celeridade

O intervalo entre o pedido do paciente e a concessão da liminar judicial, conforme Karinne, é curto, "geralmente se resolve no mesmo dia". O cumprimento por parte do Estado, porém, é imprevisível. No caso de Dionísio, cada minuto fez diferença. "O juiz concedeu a liminar numa sexta-feira pela manhã, mas domingo, às 16h30, meu pai faleceu. Na segunda-feira eu estava voltando do cemitério quando recebi uma ligação informando que a vaga estava disponível. Respondi que a única vaga que ele precisava agora era no céu", relembra Claudiana, definindo a situação do pai como "descaso".

A defensora pública do Nudesa destaca ainda que cerca de 60% dos processos que chegam ao núcleo são resolvidos de forma administrativa, sem necessidade de encaminhamento judicial, devido a parcerias da Defensoria com a Sesa e com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS). "Isso faz com que o paciente vá direto ao local de atendimento, e não ao Fórum, o que agiliza a assistência. A judicialização tem de ser entendida como o último recurso, somente quando aquilo de que a pessoa necessita não está sendo prestado", salienta Karinne Matos.

Foi o caso do cantor Vicente Nobre, 56, cujas cordas vocais foram sufocadas por um granuloma, causando problemas respiratórios e até infecção no pulmão. O problema grave claramente não seria resolvido na UPA da Praia do Futuro, único local onde conseguiu internação, como relata o companheiro dele, Valdecy Tavares, 46. "Não tinha vaga nas UTIs em nenhum hospital, então entramos na Justiça. Conseguimos liminar em menos de 24h, e o leito, no dia seguinte", relembra.

Apesar de já ter tido alta do Hospital Waldemar de Alcântara, Vicente segue em tratamento e convive com a tensão diária de uma possível necessidade de cirurgia. "Se precisar, vamos começar tudo de novo, porque não temos condições de pagar particular, já que ele parou de trabalhar há um ano. A gente fica de mãos atadas, indignado. Mas, infelizmente, acontece isso com todo mundo", lamenta Valdecy.

Falhas

Em nota, a Sesa informou que, até janeiro deste ano, 7.506 cearenses recebiam medicamentos judicializados. Destes, 2.291 ingressaram na Justiça em 2018, ano em que a Pasta recebeu 6.759 processos judiciais. Os números de 2019 não foram informados. Os medicamentos para pacientes em tratamento de câncer e doenças raras, diz a secretaria, são os mais demandados, já que "são de alto custo, não constam na Relação Nacional de Medicamentos (Rename) para fornecimento gratuito pelo SUS ou não têm distribuição regulamentada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)".

O investimento na porta de entrada cresceu, mas não se atentou para a assistência mais complexa
- Karine Matos, defensora pública

Já a SMS informou, por meio de assessoria de imprensa, que apenas a Pasta estadual se pronunciaria sobre o assunto. A reportagem também solicitou informações sobre processos e a atuação do Ministério Público Estadual (MPCE) quanto à judicialização da saúde, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.

A insuficiência de insumos e serviços fundamentais refletem, segundo a defensora do Nudesa, uma falta de atenção do Estado e da Prefeitura em relação a demandas frequentes dos cerca de 6 milhões de cearenses dependentes do SUS (dado do Sindicato dos Médicos do Ceará). "Esses processos são um termômetro das políticas públicas. A demanda de saúde cresceu muito, houve um investimento grande na porta de entrada, como as UPAs, mas não se atentou para a assistência mais complexa".

Enquanto a equação não se equilibra, os pedidos de socorro ao Judiciário se multiplicam, tornando vulneráveis as vidas abreviadas como a de Dionísio, pai de Claudiana. "Como ele, milhares passam pelo mesmo. Quando fui na Defensoria, vi gente doente atrás de remédio que não podia comprar e até de fralda descartável. Fralda. É muita burocracia! Estamos falando de saúde, de caso grave. Saúde não espera."

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