Inspeção encontra irregularidades em dois hospitais psiquiátricos

Uso de contenção física excessiva, equipes profissionais insuficientes e falta de insumos de higiene pessoal são alguns problemas registrados nas visitas. Hospital de Saúde Mental, em Messejana, não reconhece as falhas apontadas

Escrito por Nícolas Paulino e Thatiany Nascimento , metro@verdesmares.com.br
Legenda: O Hospital São Vicente é o mais antigo da Capital no atendimento psiquiátrico
Foto: FOTO: FABIANE DE PAULA

Se não bastasse a condição de enfrentar uma psicopatologia, pacientes de dois hospitais psiquiátricos no Ceará passam ainda por diversos problemas de atendimento identificados por uma vistoria nacional. O relatório "Hospitais Psiquiátricos no Brasil: Relatório de Inspeção Nacional" expõe pontos observados em dezembro de 2018, em 40 unidades psiquiátricas brasileiras, nas cinco regiões do País. No Ceará, foram inspecionados o Hospital de Saúde Mental de Messejana (HSMM) e o Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo, ambos em Fortaleza.

A pesquisa interinstitucional foi realizada por integrantes do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e não poupa críticas. Foram feitas análises das principais constatações de violações de direitos e de indícios de práticas de tortura, tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes identificados nas inspeções estaduais.

Condições

No Hospital de Saúde Mental de Messejana - única unidade da rede pública do Ceará com emergência psiquiátrica -, os relatos de pacientes, acompanhantes e profissionais alegam ausência de insumos de higiene pessoal; problemas com relação a roupas de cama (ausência ou limpeza precária); falta de espaço privativo com livre acesso para guarda de pertences pessoais e até mesmo pacientes mulheres circulando descalças, com vestuário do hospital, mas sem roupas íntimas.

Embora a unidade ofereça aos adultos internados cinco ou mais refeições diárias, conforme informações do relatório, também houve reclamações quanto à quantidade insuficiente de alimentos. Foi constatada ainda a ausência de atividades terapêuticas, levando a "um cotidiano repetitivo, no qual as pessoas passam a maior parte do tempo sem ter o que fazer".

Uma das pacientes chegou a dizer "que fica boa parte do seu dia deitada, pois não há outras atividades no Hospital". Ela diz que até ajudou a lavar o banheiro da ala feminina e trocou fralda de outra paciente, contida no leito.

A situação atesta outro problema: a falta de profissionais para dar conta das tarefas, fazendo com que haja sobrecarga de trabalho e que pacientes "passem a maior parte do dia à deriva, sem adequada condução por profissionais para acolher e/ou mediar os eventos cotidianos".

No Hospital São Vicente - unidade psiquiátrica mais antiga de Fortaleza - de modalidade filantrópica, foram encontradas situações semelhantes. "Muitos usuários relataram ajudar os mais comprometidos na hora do banho", expõe o relatório. Na unidade, não foi verificada nem sequer licença sanitária. O serviço tem lacunas na qualidade da comida. "Muitos queixam-se da alimentação, de sua qualidade e variedade, havendo relatos de mal-estar ocasionado após consumo dos alimentos", registra o relatório.

Abusos

Houve denúncias também sobre irregularidades e abusos no uso de contenção mecânica, "como castigo decorrente de um comportamento não tolerado pela equipe", sendo recorrente no acolhimento de crises. "Vários relatos expressam com naturalidade a ocorrência desta medida caso fiquem agressivos, ou até inquietos ("andando muito, tirando a roupa"), ou diante do não cumprimento de regras mais sérias ("danações")", expressa o documento.

Uma das imagens tiradas no São Vicente mostra um paciente amarrado à cadeira de rodas, comendo sozinho, com grãos de arroz espalhados pela mesa, indicando "dificuldade psicomotora para alimentar-se". Nos casos de mau comportamento, algumas pessoas relataram "castigos" que variam de "não descer para o pátio, não participar de alguma atividade, ou até mesmo ser contido e medicado".

Encaminhamentos

Advogada membro da Comissão de Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil secção Ceará (OAB-CE), Laciana Lacerda participou das vistorias e conta que nas duas unidades foram encontradas pessoas em situação de abandono, "sem perspectivas de reinserção". Segundo ela, a ausência de projetos terapêuticos singulares para os pacientes ficou evidente nos dois hospitais. O documento, explica, "traz indícios daquilo que não está funcionando e traz diversas proposições para que possam ser trabalhadas. É um indicativo para reformular e fortalecer a Política Nacional de Saúde Mental".

Outra condição grave detectada, reitera ela, é a utilização excessiva de contenção física. A aplicação dessa técnica, em geral, faz uso de faixas de tecido para conter o paciente na tentativa de restringir seus movimentos diante de crises psicomotoras e agressividade, com violência contra si mesmo ou a outras pessoas.

De acordo com Laciana, o relatório será encaminhado para os representantes do Poder Executivo no âmbito federal, estadual e municipal, para que tanto o Ministério da Saúde como os titulares das secretarias da saúde tomem conhecimento e adotem as medidas necessárias. Ela acrescenta ser fundamental que o movimento antimanicomial alcance também a família dos pacientes institucionalizados, pois, avalia ela, muitas vezes os parentes nem sequer sabem como lidar e acabam abandonando essas pessoas.

Hospitais

A reportagem procurou as duas unidades mencionadas. O São Vicente respondeu, nesta quarta-feira (14), através de nota (confira na íntegra abaixo). Já o Hospital de Saúde Mental de Messejana, em nota, explicou a situação de cada ponto levantado no relatório. De modo geral, a unidade defende que não identificou nenhuma das falhas listadas.

No documento, o diretor geral do Hospital, Frederico Emmanuel Leitão Araújo, e a diretora administrativa, Kalinka Breckenfeld, afirmaram que a direção da unidade de saúde não reconhece os problemas apontados no relatório e acrescenta que o hospital foi inspecionado e "nenhum órgão que nos visitou apontou necessidades de correção dos problemas acima levantados". Indagados sobre o que foi feito para mudar as situações descritas, a direção respondeu que "não se aplica", pois reitera que não reconhece tais questionamentos.

Confira as respostas dada pela direção do Hospital de Saúde Mental de Messejana (HSMM) sobre os problemas registrados no relatório

1 - Problemas com roupas de cama (ausência e limpeza)
Resposta: O Hospital possui contrato celebrado entre a Secretaria do Estado do Ceará (Sesa) e uma empresa especializada no ramo que fornece todo o enxoval necessário para cada leito hospitalar. Salientamos que não falta nada para o paciente que recebe atendimento neste hospital. Quanto a higienização e limpeza do HSM, da mesma forma, existe um contrato celebrado entre a SESA e uma empresa especializada no ramo, que presta serviço, fornecendo mão de obra qualificada obedecendo todas as técnicas de limpeza e rotinas para as higienizações necessárias.

2 - Reclamações sobre quantidade insuficiente dos alimentos
Resposta: O Centro de Nutrição e Dietética (CENUT) do Hospital esclarece que são fornecidas 06 (seis) refeições por dia para pacientes, acompanhantes e funcionários visando sempre o fornecimento adequado de nutrientes. Esclarece ainda que em relação ao aporte calórico servido na composição dos cardápios, é oferecida uma média de 1.930 a 2.120 calorias, sendo desta maneira, considerado cardápio normocalórico, ou seja, com quantidades normais de calorias. Informamos ainda que o CENUT/HSM conta com equipe de nutricionistas capacitados para avaliar as composições dos cardápios no que se refere a sua qualidade nutricional, bem como avaliar os pacientes em tudo que concerne ao estado nutricional com as intervenções cabíveis a cada paciente, ficando os mesmos assistidos de maneira integral com relação à nutrição.

3 - Usuários sem roupas e calçados se familiares não levarem
Resposta: O paciente que tem indicação para internamento nesta unidade hospitalar, na emergência mesmo ele já recebe um kit do enxoval (pijama, toalha de banho e lençol), portanto são dispensados objetos pessoais já que o hospital disponibiliza o necessário para sua higienização pessoal e vestuário.

4 - Não há guarda privativa de objetos
Resposta: O HSM já disponibiliza todo e qualquer produto e vestuário que se faça necessário para uso pessoal dos pacientes.

5 - Ausência de atividades terapêuticas
Resposta: O HSM dispõe de atividades terapêuticas diariamente, nos turnos manhã e tarde, inclusive com um Centro de Atenção em Terapia Ocupacional e Fisioterapia. Há uma equipe de terapeutas ocupacionais para oficinas terapêuticas e para atender pacientes com restrições físicas e/ou psíquicas. Também dispomos de profissionais fisioterapeutas. Todas as unidades de internação são contempladas com atenção de psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais e médicos psiquiatras assistentes.

6 - Uso de contenção física por mais tempo que o necessário
Resposta: Todas as contenções físicas são realizadas somente por prescrição médica e são mantidas apenas pelo tempo necessário para a tranquilização do paciente e eliminação do risco para se e para terceiros.

7 - Equipe profissional insuficiente
Resposta: Todos os setores do HSM são contemplados com equipe multiprofissional necessária para o bom atendimento aos pacientes. Há a presença de toda a equipe indispensável à assistência em saúde mental: médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, técnicos de enfermagem, assistente sociais, farmacêuticos, nutricionistas e fisioterapeutas.

8 - Restrição parcial de visitas
Resposta: Os pacientes internados no hospital podem receber visitas de seus familiares e amigos todos os dias, sem restrições.

Confira as respostas dada pela direção do Hospital São Vicente sobre os problemas registrados no relatório

1- Ausência de ouvidoria
Resposta: A equipe de Assistentes Sociais realiza a acolhida e registro de todas as manifestações de pacientes, familiares e visitantes, e encaminha diretamente a Direção, que dá a tratativa necessária para cada caso.

2 - Sem Alvará ou licença sanitária
Resposta: O Hospital possui Alvará Sanitário e de Funcionamento, válidos e fixados na entrada de nossa instituição. 

3 - Não há guarda privativa de objetos
Resposta: São disponibilizados armários fechados para guarda de pertences de pacientes.

4 - Contenção física/ química como castigo
Resposta: Todos os pacientes passam por avaliação médica antes de qualquer administração de medicamentos e contenções físicas. Medicações e contenções são aplicadas dentro da psiquiatria com o objetivo terapêutico para minimizar riscos para os pacientes e para os demais. 

5 - Equipe profissional insuficiente
Resposta: Possuímos equipe multiprofissional composta de médicos psiquiátricos e clínicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, nutricionista, psicólogas, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais e farmacêuticos. Diariamente são realizadas atividades terapêuticas no período da manhã e da tarde
  
6 - Restrição parcial de visitas
Resposta: Ofertamos para os familiares 4 dias para a realização de visitas com a participação das equipes multiprofissionais. E as demandas de visitas individuais são atendidas diariamente. 

7 - Banheiros sem portas
Resposta: O hospital dispõe de banheiros com cabine individualizada.

8 - Falta de insumos de higiene pessoal
Resposta: Fornecemos aos nossos pacientes todos os produtos de higiene pessoal necessários. 

9 - Reclamações sobre a qualidade dos alimentos
Resposta: Possuímos nutricionista em período integral em nosso hospital, que realiza o planejamento variado e balanceamento dos nutrientes das 6 refeições servidas aos nossos pacientes. É realizada por esse profissional a supervisão da qualidade desde a compra, armazenamento, preparação e fornecimento dos alimentos. É também avaliado pela equipe de nutrição cada paciente individualmente e preparada dietas especiais conforme a necessidade de cada um. 

10 - Problemas com roupa de cama (ausência e limpeza)
Resposta: Possuímos um contrato com uma empresa especializada em lavagem de roupas hospitalares que seguem todas as normas de boas práticas na higiene, e que nos fornece diariamente todo o enxoval necessário. É realizada troca diária de roupas de cama e das roupas de pacientes, mantemos a disposição um estoque para que todas as vezes que se façam necessárias estejam disponíveis para trocas extras durante o dia e a noite.

11 - Pacientes ociosos pela falta de projeto terapêutico
Resposta: É realizado um plano de atendimento multiprofissional individualizado. É realizado o registro e a evolução de todos os atendimentos e atividades terapêuticas individuais e em grupo compondo o prontuário de cada paciente. 
 

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